Ao vê-la,
lembrei uma carta que o poeta António José Forte, em tempos de ditadura, escreveu aos responsáveis da
Gulbenkian.
A carta foi
recordada por José do Carmo Francisco na Ler,
revista do Círculo de Leitores, de que não tenho a indicação de data e número.
Ex.mos Senhores:
Um bem triste e lamentável episódio
interrompeu ontem, dia 27, a marcha feliz e entusiástica que esta Biblioteca
iniciou há pouco por terras do Baixo Minho. Foi o caso de um abade que se nos
atravessou no caminho, não para suicidar-se. O que seria altamente honroso para
ele, mas para apressar o suicídio dos seus submissos paroquianos, boa gente,
diga-se de passagem, mas cegos como todos os suicidas involuntários.
«Estávamos nós estacionados em Parada de
Baixo, terra célebre nestas redondezas pelas suas laranjas e outras frutas,
quando o pároco da freguesia, zeloso da salvação das suas ovelhas, decidiu
intervir. A intervenção foi ridícula e teatral por um lado e pelo outro infame
e de franca má fé.
«Acusando-nos de estarmos a distribuir
livros protestantes, ameaçou os paroquianos de excomunhão ipso facto (foram palavras
textuais do padre) caso ousassem levar um único exemplar que fosse. E não
contente com essa ameaça arrancou das mãos de alguns leitores as obras já
requisitadas e atirou-as ao chão que, por sinal, estava um pouco enlameado. Em
seguida, e para intimidar-nos, exigiu que nos identificássemos, o que recusámos
gostosamente. Depois explicámos às pessoas, não ao padre, que aquela Biblioteca
se tratava de uma instituição legal, e que pertencia à consciência de cada um
escolher entre levar livros e devolvê-los. Graças ao Diabo houve uma minoria
que se manteve firme, não abdicando da vontade própria, mas aos que estavam no
que julgam ser a graça de Deus principiaram a devolver os livros, e da maneira
mais correcta possível, quer atirando-os ao chão quer lançando-os para dentro
do furgão. Claro que pelo padre estava a maioria das mulheres que se não
poupavam a insultos e ameaças, o que, consequentemente, provocou uma atitude
hostil por parte de alguns homens, os quais, homens, ocasionalmente é verdade,
pois regressavam do trabalho, traziam ao ombro uma sachola de cabo bastante
comprido. De modo que resolvemos retirar-nos.
A nossa próxima visita a Parada do Bouro
está marcada para 27 de Janeiro [1961] e é nossa firme intenção lá voltar. Mas
não podemos ir desprevenidos e por isso desejamos que nos autorizem a fazê-lo
acompanhados pela Guarda Republicana, ou que nos enviem armas. Desnecessário se
torna, naturalmente, sugerir que tentem proceder contra o padre (de sua graça
Isac).
Por nós, participaremos hoje ou amanhã ao
Presidente da Câmara de Vieira do Minho o ocorrido.
Aqui a indignação é, pode dizer-se, geral.
Os correspondentes dos jornais Jornal
de Notícias e Primeiro
de Janeiro já enviaram notícias de protesto. Nós prosseguiremos.
Atenciosamente
Vieira, 28 de Dezembro de 1960.
António
José Forte
Legenda: a
fotografia é tirada do blogue Restos deColecção.
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