quarta-feira, 7 de setembro de 2016

RECADOS



Há um verso de Kahil Gibran que explica como a dor deve primeiro escavar o espaço que a alegria virá encher. Unir dor e alegria, ligar paciência ao grito, perceber que estão costuradas com a mesma delicada linha a noite mais áspera e a leveza do riso (ou vice-versa) são aprendizagens que nos fazem aceder à profundidade da vida. A bem dizer, o desafio chega-nos de toda a parte, mesmo se oculto por uma crosta que temos de quebrar. Acontece, por exemplo, associarmos isto ou aquilo a uma visão jubilosa, mas também ingénua, do que é viver. Quando arriscarmos olhá-los de perto, porém, não é que essa expressão intensamente solar se desvaneça, mas como que se complexifica, matura, torna-se real.
Talvez os seus milhões de leitores ignorem, mas o lugar mais provável para a criação de “O Principezinho” é uma cama de hospital em Nova Iorque, onde Saint-Exupéry se tratava de sequelas complicadas dos acidentes que havia sofrido. Um amigo tinha-lhe oferecido uma caixa de aguarelas. Na indefinição daquele exílio americano, preso à solidão do longo internamento, ele teria esboçado a parábola do viajante menino apaixonado pela sua rosa. Saint-Exupéry conhecia demasiado bem o desenraizamento espiritual do mundo moderno apostado mais em consumir do que em consumar, o fosso instalado entre técnica e humanidade, a acumulação de conhecimentos e a escassez de sabedoria. O seu projeto é levar-nos até ao deserto exterior para que nos demos conta da desertificação interior que se apodera de tudo e assim reacendermos em nós a sede e o desejo.

De  uma crónica de José Tolentino de Mendonça no Expresso, 17 de Agosto de 2013

Legenda: ilustração de Antoine de Saint-Exupéry em O Principezinho

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