Os Segredos de Lisboa
José Gomes
Ferreira
Série de
Ficção nº 5
Série a cargo de Alexandre Pinheiro Torres
Edições
Tempo, Lisboa s/d
Quero ter a coragem pública de confessar
(embora na verdade esta revelação nada interesse ao mundo) que, em certa altura
da minha vida, receei sèriamente converter-me numa espécie de tipo popular
lisboeta, perseguido nas ruas pelos garotos e pelas gargalhadas das pedras.
Período terrível esse, de sonambulismo andante, em que o meu alheamento aproveitava
todos os pretextos para calcorrear a cidade, de beco em beco, de lampião em
lampião, de tombo em tomo, zaranza, sem rédeas, a esbofetear recordações e até,
para extrema vergonha minha, a falar só!
Em resumo: foi apenas por último cerrar de
dentes de vigilância que consegui o milagre de evitar o escárnio da perseguição
(«Eh! maluco! Eh! fala-tonto!») quiçá infalível se não escolhesse para essas
vagabundagens as horas desertas da noite, quando o silêncio crepita mais vivo
na solidão e sinto o desejo sedento de atravessar as paredes das casas com pés
de espectro para andar, de quarto em quarto, de cubículo em cubículo, a espiar
o sono secreto de todas as mulheres (sim, de todas) desde as costureirinhas de
calças às damas elegantes do desdém dos chás das cinco.
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