terça-feira, 13 de agosto de 2019
DEDICATÓRIA
A uma devagarosa mulher de onde surgem os dedos, dez e queimados por uma forte delicadeza. Atrás, o monumento do seu vestido ocidental – erguido e curvo. E o vestido trabalhava desde o fundo e de dentro – como uma raiz branca – para o aparecimento da cabeça. A paisagem posterior é de livros, todos eles de costas voltadas, dominados pelas ardentes pancadas das suas letras. Algures vai passar a lua cavalgando a luz de um só lado, impressamente no papel redondo do céu. Os peixes são também números e tremem de subtileza à volta do lugar ameaçado. E o pescoço da mulher é uma letra de catedral, a letra de um alfabeto morto que um dia se encontrará noutro planeta – arcaica e reinventada. As letras evaporam-se intimamente: são magnólias. E aí está essa mulher que se move na paisagem escorregadia – rodeada por casas arrancadas pela raiz, voltadas no ar. Penso muito em todas essas letras simplesmente pousadas no A da sua cor vermelha, tal como a maçã que se põe – quieta e morosa – sobre o quanto vai ser de madura, e isso vindo da sua obscuridade, da sua salva infância de maçã. E a mulher enche-se de folhas para a sua maçã. E ocupamo-nos novamente na bela insensatez. Como o alfabeto. A lua cavalga a grandeza da mulher, as letras aparecem impressas no muro desse vestido branco ocidental, letras como estátuas de animais. A mulher vai ter uma cabeça de cão aberta em basalto – os cabelos lavrados no osso como as linhas numa página. E a cabeça de cão sorri implantadamente no alfabeto, apoiada no ocidente do vestido. E é um livro.
Herberto Helder em Vocação Animal
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