domingo, 16 de julho de 2023

CRONICANDO POR AÍ


Este calor de ananases anda a dar cabo de mim. Vingo-me em leituras frescas como esta crónica do Manuel S. Fonseca que roubo do seu blogue.

Também estive naquela mão do Vata, entalado no meio de 120 mil benfiquistas, mesmo no lado norte, no enfiamento da baliza, e juro que não vi mão nenhuma e não vi por circunstâncias várias.

O Vata também não, e até morrer dirá que não houve mão nenhuma, Talvez um ombro… «e cada um é livre de pensar o que quiser…»

«O Valdo cobrou um canto, o Magnusson saltou à minha frente e desviou de cabeça na área e a bola veio ter na minha direção. Meti o ombro e foi golo.»

O Manuel S. Fonseca coloca uma imagem da mão do Maradona, eu coloco uma imagem da mão do Vata, exactamente no dia em que ali atrás declaro que irei comprar a «Vida de Beethoven» da «Guerra & Paz», editora de que é proprietário este mesmo Manuel S. Fonseca.

Saravá!

«Houve uma guerra, é bom que se diga. Eu vou, é certo, falar de paz, da paz gritada, apupada, esfusiante e delirante, que é um jogo de futebol. Não posso é esconder que houve antes uma guerra e que as tropas inglesas da democrática Senhora Tatcher tinham agarrado pelos colarinhos e humilhado as tropas do ditador argentino, o general Videla.

A guerra fora nas Maldivas, mas estava-se agora no Estádio Azteca. O nome do estádio já provoca uma aflição kirkegaardiana: a angústia dos ecos ancestrais do choque de índios e conquistadores ressoava ainda em cada pedra do estádio. E estarem frente a frente, nessa final do Mundial de 1986, no quente mês de Junho, as equipas da Inglaterra e da Argentina, deixa cair sobre esse confronto um épico pingo de “capsaicina”, a substância activa “del chile”, o picante que faz arder “las carnitas” e “los tacos” mexicanos.

No Estádio Azteca, eram duas civilizações que estavam frente a frente. E lembrem-se, o próprio esférico, uma estreia, era uma bola novinha em folha, igualmente chamada Azteca, o nome a acordar os demónios do passado, mas na forma um exemplo de revolução tecnológica, a primeira bola de futebol a dispensar o couro, toda em adricron, um revestimento sintético impermeável, trinta e duas faces hexagonais elegantes, e de uma inquebrantável longevidade. O horror que foi jogar anos com bolas de catechu, a que uma boa chuvada acrescentava meia tonelada: eis o que afogou o mínimo Eusébio que havia em mim, a encharcada e incirculante bola de catechu.

Adiante e vejam, é a nova bola revolucionária que circula entre Shilton e Lineker, entre Valdano e o pequeno deus chamado Diego Maradona. Durante 45 minutos, esses dois mundos ressentidos, a nórdica rosa dos Tudor e o azul ultramarino das pampas, mediram-se, sem se ferir. Mas aos seis minutos da segunda parte, o defesa Steve Hodge tenta aliviar a pressão sobre a sua área: a mal pontapeada bola ganha efeito e cruza a área, Shilton, o guarda-redes, salta com Maradona. O punho de Shilton vai lá acima, a 200 metros de altura, mas o pequeno Maradona, num exercício de prestidigitação, voa 201 metros e a sua cabeça desvia a bola para o fundo das redes. E há aqui um grande imbróglio teológico-anatómico: a cabeça de Maradona ali, a 201 metros de altura, tão perto do céu, foi roubada por um Deus omni-invejoso. Deus, sentindo o homérico jogo de futebol a roçar-lhe os berlindes, quis também jogar e pôs a sua mão onde devia estar a cabeça prodigiosa de Dieguito. Diga-se, àquela bola, toda feita do leve adricron, bastaria, se Deus quisesse, um simples sopro, mas quem não quereria, em 1986, mesmo Deus, sopesar na própria mão a leveza desse revestimento sintético, o poliuretano, à prova de água.

Essa bola, a Azteca do Estádio Azteca de 1986, esteve, até ao ano passado, nas mãos do árbitro tunisino, Ali Bin Nasser, que Deus iludiu naquela jogada disputada nas nuvens. Quis agora o árbitro, sufocado pela insidiosa presença de Deus, descarregar a temível sombra sobre a humanidade. Num leilão, alguém pagou 2,4 milhões de dólares para ter em casa a bola que a mão de Deus tocou. Já pela camisola de Maradona, que ele, no fim do jogo, dera a Hodge, o inglês que fez o involuntário centro, em leilão alguém ofereceu e pagou mais de 9 milhões, a mais cara camisola de futebol de sempre.

Onde está, pergunto eu, a bola que a mão de Vata meteu na baliza do Olympique de Marseille, no jogo que estes meus olhos viram e que levou o Benfica à final da Liga dos Campeões? O que eu não pagaria por ela em leilão!»

Manuel S. Fonseca em A Página Negra

3 comentários:

Seve disse...

Com batota uns aumentam os currículos outros veem-nos diminuídos.
Poucos sportinguistas apagaram da memória o fatídico embate com o Paços de Ferreira na noite de 16 de Setembro de 2006. Em cima do intervalo, um golo do avançado brasileiro Ronny (do Paços) , visivelmente com a mão, escandalizou as bancadas de Alvalade roubando-nos um título.
E deste modo (com batota) uns somam X outros somam menos X.
Portanto, Maradona, Vata e Ronny são 3 batoteiros!!!!

Sammy, o paquete disse...

Poderíamos concluir, caro Seve, que todo o futebol é uma batota.
O poeta Carlos Drummond de Andrade gostava de futebol, respirava futebol e só quem assim gosta de futebol, poderia dizer: «Bem aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade.»

Seve disse...

É verdade Sammy!
Estou absolutamente de acordo, mas o nosso gosto pelo jogo (e sobretudo pelo nosso clube) torna-nos, às vezes, cegos, surdos e mudos.
Já John Lennon dizia (transportando o pensamento para o futebol) "a ignorância é uma benção".