Em Novembro de 2013, com E a Noite Roda, Alexandra Lucas
Coelho venceu o Grande Prémio de Romance da Associação Portuguesa de
Escritores.
Palavras de Alexandra Lucas Coelho, em Abril deste ano, aquando da
entrega do Prémio:
Este prémio é tradicionalmente entregue pelo
Presidente da República, cargo agora ocupado por um político, Cavaco Silva, que
há 30 anos representa tudo o que associo mais ao salazarismo do que ao 25 de
Abril, a começar por essa vil tristeza dos obedientes que dentro de si recalcam
um império perdido.
E fogem ao cara-cara, mantêm-se pela calada. Nada
estranho, pois, que este Presidente se faça representar na entrega de um prémio
literário. Este mundo não é do seu reino. Estamos no mesmo país, mas o meu país
não é o seu país. No país que tenho na cabeça não se anda com a cabeça entre as
orelhas, “e cá vamos indo, se deus quiser”.
Não sou crente, portanto acho que depende de nós mais
do que irmos indo, sempre acima das nossas possibilidades para o tecto ficar
mais alto em vez de mais baixo. Para claustrofobia já nos basta estarmos vivos,
sermos seres para a morte, que somos, que somos.
Partimos então do zero, sabendo que chegaremos a zero,
e pelo meio tudo é ganho, porque só a perda é certa.
O meu país não é do orgulhosamente só. Não sei o que
seja amar a pátria. Sei que amar Portugal é voltar do mundo e descer ao
Alentejo, com o prazer de poder estar ali porque se quer. Amar Portugal é estar
em Portugal porque se quer. Poder estar em Portugal apesar de o Governo nos
mandar embora. Contrariar quem nos manda embora como se fosse senhor da casa.
Eu gostava de dizer ao actual Presidente da República,
aqui representado hoje, que este país não é seu, nem do Governo do seu partido.
É do arquitecto Álvaro Siza, do cientista Sobrinho Simões, do ensaísta Eugénio
Lisboa, de todas as vozes que me foram chegando, ao longo destes anos no
Brasil, dando conta do pesadelo que o Governo de Portugal se tornou: Siza
dizendo que há a sensação de viver de novo em ditadura, Sobrinho Simões dizendo
que este Governo rebentou com tudo o que fora construído na investigação,
Eugénio Lisboa, aos 82 anos, falando da “total anestesia das antenas sociais ou
simplesmente humanas, que caracterizam aqueles grandes políticos e estadistas
que a História não confina a míseras notas de pé de página”.
Este país é dos bolseiros da FCT que viram tudo
interrompido; dos milhões de desempregados ou trabalhadores precários; dos
novos emigrantes que vi chegarem ao Brasil, a mais bem formada geração de
sempre, para darem tudo a outro país; dos muitos leitores que me foram
escrevendo nestes três anos e meio de Brasil a perguntar que conselhos podia eu
dar ao filho, à filha, ao amigo, que pensavam emigrar.
Eu estava no Brasil, para onde ninguém me tinha
mandado, quando um membro do seu Governo disse aquela coisa escandalosa, pois
que os professores emigrassem. Ir para o mundo por nossa vontade é tão
essencial como não ir para o mundo porque não temos alternativa.
Este país é de todos esses, os que partem porque
querem, os que partem porque aqui se sentem a morrer, e levam um país melhor
com eles, forte, bonito, inventivo.
Não devo nada ao Governo português no poder. Mas devo
muito aos poetas, aos agricultores, ao Rui Horta, que levou o mundo para
Montemor-o-Novo, à Bárbara Bulhosa, que fez a editora em que todos nós, seus
autores, queremos estar, em cumplicidade e entrega, num mercado cada vez mais
hostil, com margens canibais.
Os actuais governantes podem achar que o trabalho
deles não é ouvir isto, mas o trabalho deles não é outro se não ouvir isto. Foi
para ouvir isto, o que as pessoas têm a dizer, que foram eleitos, embora não
por mim. Cargo público não é prémio, é compromisso.
Portugal talvez não viva 100 anos, talvez o planeta não
viva 100 anos, tudo corre para acabar, sabemos. Mas enquanto isso estamos
vivos, não somos sobreviventes.
Este romance também é sobre Gaza. Quando me falam no
terrorismo palestiniano confundindo tudo, Al-Qaeda e Resistência pela nossa
casa, pela terra dos nossos antepassados, pelo direito a estarmos vivos, eu
pergunto o que faria se tivesse filhos e vivesse em 40km por seis a dez de
largura, e antes de mim os meus antecedentes, e depois mim os meus filhos, sem
fim à vista. Partilhei com os meus amigos em Gaza bombardeamentos, faltas de
água, de luz, de provisões, os pesadelos das meninas à noite. Depois de eu
partir a vida deles continuou. E continua enquanto aqui estamos. Mais um dia
roubado à morte.
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