Dois velhos a viverem há cinquenta anos numas águas
furtadas da Avenida Marginal, frente ao Tejo: ele reformado da construção
naval, sentado à cabeceira da mulher que esperava a morte que não vinha, e a
olhar os navios que entravam e saíam da barra; a estudar os voos das gaivotas;
a confirmar hora após hora os comboios que passavam entre ele o rio por essas
praias além; a pensar mundos perdidos para lá dos nevoeiros. E vencido, impotente,
porque a mulher há tantos anos, minada por metástases até aos ossos gritava,
dormia e respirava dores, implorando a Deus que a levasse, depressa, Senhor,
depressa para a sua santíssima presença.
Uma manhã, ao despertar, o velho viu-a por instantes
bela e serena como nos seus tempos de amor. E chorou de mansinho e também ele
desejou morrer.
Depois sentiu as dores a aproximarem-se de novo, e a
escorrer lágrimas de desespero, de cansaço, de saudade, abraçou-se à mulher
amada, envolveu-se nela e no seu sofrimento e cobriu-lhe o corpo de facadas.
Suicidou-se atropelado por um comboio, mesmo em frente
da janela onde costumava ver passar os navios.
José Cardoso Pires
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