sexta-feira, 23 de março de 2012

A GRAÇA DOS PRAZERES


Prazeres que não de cemitério. Prazer, no outro lado da linha da carreira 28 – a Graça. Gozo da viagem tranquila, compassada, escolhendo horas fora de ponta. Conviver – se possível com a cordial botelha de que falava o outro. Fazer do trajecto uma festa para os olhos que miram a cidade à escala humana, também para o espírito que nela procura encontrar sentido – o lugar humanizado.

Graça do eléctrico que ainda não roubaram ao convívio. Deseje feito de paixão, destas coisas bem alfacinhas, como os corvos nas carvoarias; o balcão das tabernas; algumas mesas de mármore onde se bate com força o dominó; pátios, vilas, escadinhas.

Prazeres, pequenos que sejam, no deixar correr o sentimento no teclado, para dizer ao leitor que o eléctrico é uma das últimas aventuras permitidas no nosso dia-a-dia. A corrida e o salto para o estribo; a suavidade doce do cobre e do latão: o verniz nas madeiras; o que resta de um amarelo-limão a lembrar canários.

Graça, ali tão perto, feminina, namoradeira, deixando-se cair, redonda nos outeiros, para carris de fantasia que a levam às viagens mais loucas dos sentidos. Luzinhas que piscam nos palácios; claraboias a arder; mirantes de outros santos que não vêm no calendário.

Prazeres, leitor, no colorido das aldeias dentro do cinzento da metrópole; a sardinheira na varanda da vizinha: o rinhaunhau do gato no telhado ali defronte; o sapateiro naquele vão de escada; o amolador de tesouras e navalhas, quando chegam as primeiras chuvas.

Graça, em diminutivo, dos prazeres. Não nos tirem esta graça.

Eduardo Guerra Carneiro, crónica no Diário Popular s/d.

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