O escritor, cartoonista e humorista brasileiro Millôr Fernandes morreu na noite de terça-feira, aos 88 anos, no seu apartamento, na zona sul do Rio de Janeiro.
Chamo-me Millôr Fernandes, o que, já não sendo uma novidade, ainda não é uma elegia. Sou um homem de estatura mediana, idade mediana, inteligência mediana, razoável saúde. Nasci no Méier, subúrbio baixa-classe-média do Rio, atravessei socialmente esta cidade, e hoje vivo pegado ao Country Club - mas não se assustem que não sou sócio. Sou magro e tonto, vago e preocupado. Gostaria de ter a beleza física de um Allan Delon, o génio de Sean O'Casey e a inevitável simpatia do Pato Donald, mas como o destino poderia me ter dado a fúria negativa de um Goldwater, contento-me com o que sou.
Só uma coisa me causa mau humor: o mau humor dos outros. Sou considerado comunista por alguns reaccionários e reaccionário por alguns comunistas e todos têm razão pois sou inengajável. Como o revolucionário mexicano, trabalho por conta própria. Eu mesmo faço fogo, eu mesmo grito por socorro, eu mesmo uso o extintor - não tenho salvação. Sou popular por natureza, por mais que me esforce para ser hermético e profundo. A mim, infelizmente, todos me compreendem. o maior de meus orgulhos profissionais é ter sido publicado no almanaque farmacêutico da Saúde da Mulher.
Creio no racional, mas também no amor à primeira vista. Creio numa lógica de ferro, mas também no alógico, no ilógico, no sensorial, no subjectivo, no subliminal. Meu lema é «tem de tudo». São precisos muitos tiques e muitos toques para fazer um mundo.
No escuro não enxergo, não entendo do que não sei, páro onde me detenho, vou e volto cheio de saudades. Pois, se fico, anseio pelo desconhecido. Se parto, rói-me a separação. Dou um boi para não entrar numa briga. Dou uma boiada para sair dela.
Sou hesitante, tenho, muitas vezes, o temor de desagradar, nem sempre sinto coragem de dizer exactamente o que penso ou tudo que penso, emprego palavras mais suaves do que o criticado mereceria, ou perco a cabeça e uso um padrão de julgamento agressivo e injusto. Sou, em suma, como todo o mundo.
Como quase todo o mundo. Pois há os duros, os verdadeiramente sábios, e há os santos. Nem por brincadeira devemos negar a existência dos privilegiados. Que existem e nos salvarão a todos. Não perguntes por quem os sinos dobram.
Com esta crónica planto aqui uma bandeira que esvoace a todos os ventos da nossa triste e sufocada língua. Minha intenção é falar do circunstancial, do supérfluo, do mínimo, do dispensável. Daquilo em que nós, cariocas, somos excelentes - não a grande retórica mas a miúda conversa do pé de ouvido, se possível ouvido, ai, que nem nos ouça. Vou falar desta cidade que não entendo para esse vasto mundo de que não entendo.
Os que, por acaso, forem um dia atingidos por qualquer pedra minha, que se defendam como os lagos, na beleza indorida dos círculos concêntricos. O que eu houver dito será somente uma opinião, pessoal e duvidosa. Como todo jornalista tenho a esmagadora vantagem de ver minha palavra multiplicada pelo número de exemplares do jornal em que escrevo. Mas é sempre bom lembrar: por mais potenciado que seja o que digo, jamais passará de uma opinião. Assusta-me influir mais do que devo - e mereço.
Estou longe de poder ou querer ser a palmatória do mundo. E isso por um motivo simples: acredito que, por meu comportamento, trabalho, e modo de viver, qualquer um pode-me aceitar, sem muito esforço, como um «homem-de-bem» Mas estou certo também de que, se a minha vida examinada rigidamente, à luz dos códigos, eu pegaria pelo menos trinta anos de cadeia.
E, não sendo hebreu, eu beijo as plantas da mulher de Putifar.
Este texto, Apresentação (quase) desnecessária, foi retirado de uma Antologia editada, em 2004, pelo semanário O Independente e organizada por João Pereira Coutinho, com prefácio de José Alberto Braga.
Tem uma epígrafe de Olavo Bilac:
Por ser de minha terra é que sou rico,
Por ser de minha gente é que sou nobre.
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