sábado, 17 de março de 2012

NOCTURNO DA GRAÇA


Há um rumor de bosque no pequeno jardim
Um rumor de bosque no canto dos cedros
Sob o íman azul da lua cheia
O rio cheio de escamas brilha.
Negra cheia de luzes brilha a cidade alheia.


Brilha a cidade dos anúncios luminosos
Com espiritismo bares cinemas
Com torvas janelas e seus torvos gozos
Brilha a cidade alheia.


Com seus bairros de becos e de escadas
De candeeiros tristes e nostálgicas
Mulheres lavando a loiça em frente das janelas
Ruas densas de gritos abafados
Castanholas de passos pelas esquinas
Viragens chiadas dos carros
Vultos atrás das cortinas
Cíclopes alucinados.


De igreja em igreja batem a hora os sinos
E uma paz de convento ali perdura
Como se a antiga cidade se erguesse das ruínas
Com sua noite trémula de velas
Cheia de aventurança e de sossego.


Mas a cidade alheia brilha
Numa noite insone
De luzes fluorescentes
Numa noite cega surda presa
Onde soluça uma queixa cortada.


Sozinha estou contra a cidade alheia.
Comigo
Sobre o cais sobre o bordel e sobre a rua
Límpido e aceso
O silêncio dos astros continua.


Sophia de Mello Breyner Andresen em Cem Poemas de Sophia


Legenda. Busto de Sophia de Mello Breyner Andresen, no Miradouro, que tem o seu nome, junto à Igreja da Graça em Lisboa.

Sem comentários: