quinta-feira, 22 de março de 2012

OS CLÁSSICOS DO MEU PAI


Duas ou três vezes por mês, havia cinema e jantarada com o meu pai.

Penso que já contei por aqui, quando fomos ao Londres ver A Insustentável Leveza do Ser e, ao fim da primeira vintena de minutos da fita, o meu pai diz:  e se fossemos jantar?

Lembro-me, quando vimos, no Fórum Picoas, do João César Monteiro, Recordações da Casa Amarela.

 O divertimento foi de tal ordem, que mereceu jantar bem regado no Restaurante Isaura, ali à Avª Paris, a relembrar as loucuras do João.

Er um prazer enorme jantarmos com uma(s) garrafa(s) de tinto pelo meio.

As conversas debruçavam-se pelos mais variados assuntos: livros, política (pouca) filmes, música, futebol.

Gostava de árias de óperas e adquiriu alguns vinis de antologias.

Esta é uma dessas colectâneas

Os CDs nunca o entusiasmaram e recusou-se mesmo  a comprar um CD player.

Preferia os discos de vinil e as cassettes.

Volta e meia comprava CDs, chegava aqui a casa, comia uma sopinha, bebia uma garrafa de tinto Arruda, e dizia: gravava-me isto.

Os CDs ficaram por aqui.

Como este da ópera Dido e Eneias de Frank Purcell.


A acção de Dido e Eneias é baseada na Eneida de Virgílio. Passa-se em Cartago após a chegada de Eneias. Este e os seus homens vêm procurar auxilio depois de terem fugido de Tróia quando destruída pelos gregos.

A viúva Dido, rainha de Cartago, deixou-se encantar pela beleza do jovem troiano, contudo mostra-se relutante em declarar o seu amor. A sua aia, Belinda e a corte, incentivam-na a avançar. Quando Eneias a pede em casamento, Dido aceita.
Entretanto Bruxas malévolas planeiam a desordem. Levantam uma tempestade, e uma delas, disfarçada de Mercúrio, vai relembrar Eneias de que deve continuar o seu caminho para Itália. Para grande satisfação das bruxas Eneias acata as ordens do falso Mercúrio e deixa Cartago. Desolada pela traição de Eneias, Dido despede-se da Vida.

(Sinopse da ópera feito pela Antena 2)

Tinha um enorme gosto por esta obra de Purcell e comovia-se, especialmente, quando ouvia o lamento de Dido,  When I am laid in earth, que considerava uma das mais pungentes árias de ópera

Lembra-te de mim mas esquece o meu destino.

Deixo-vos, agora, com um  pedaço de crónica do António Lobo Antunes

- Será isto?

a responder-me

- Não deve ser isto mas vou continuar

sem que a qualidade do texto me interessasse: a única coisa que me interessava era se haveria ali a espessura que queria. O capítulo número dois passou pelos mesmos tratos de polé e, a meio de uma correção pareceu-me que a obra tinha, finalmente, chegado. Fiz o primeiro borrão do capítulo número três e acabei, há horas, o primeiro borrão do capítulo número quatro. E vou continuar até ao fim com um borrão apenas, para refundir tudo a seguir, caminhando como uma casa em chamas num nevoeiro ardente de palavras. É capaz de ser o livro, meu Deus, daqui a sei lá quantos meses saberei se é o livro, saberei se sequei ou ainda tenho vida em mim. Até essa altura a incerteza, o cagaço. Esta crónica não deve ser muito interessante para o leitor, trata-se do mero relato de um homem às aranhas com o seu trabalho. Achei que tinha obrigação de o partilhar com vocês: afinal de contas são os meus cúmplices e têm o direito de saber o que se passa na oficina, como dizia o Zé Cardoso.

- É preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer
insistia ele

- É preciso que a gente sofra para o leitor ter prazer

e, como em muitas outras coisas, é capaz de estar certo, o sacana. Aqui entre nós faz-me uma falta do caneco. Tenho saudades tuas que me farto, meu malandro.

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