Ter e Não Ter é um dos meus filmes de cabeceira, um daqueles que sem qualquer sombra de dúvida levaria para a tal ilha deserta... Tem um belo guião do William Faulkner, tem o Bogart e a Bacall em estado de graça de começo de festa, mas também tem o Walter Brennan (um dos melhores actores secundários de sempre...), que passa a vida a perguntar às pessoas se alguma vez foram mordidas por uma abelha morta, o Hoagy Carmichael, de que tanto gosto, a tocar piano e a cantar, o Marcel Dalio atrás do balcão e o também grande (em todos sentidos...) Dan Seymour a fazer de Pide (seu papel preferido...) e a perguntar ao Bogart quais são as suas simpatias políticas (minding my own business, responde-lhe ele...)...
E tem também um belo final, que irá direitinho para a cassette da Aida. É um hino à Vida, à Amizade, à Comunidade e à Integridade como poucos filmes o foram. E tem os diálogos mais sensuais da história do cinema americano (se pusermos de lado as tiradas demasiado "rasteiras" da Mae West...).
Vou dar-vos um exemplo, em inglês porque em português perde toda a sua graça e musicalidade. Mas antes tenho de explicar, a quem não conhece o filme, que a Bacall (Slim - magrinha - no filme, e com essa alcunha ficaria para sempre para o Bogart até este morrer de um cancro e um milhão de whiskies, como então escreveu o André Bazin, crítico de cinema francês...) andava ressabiada, porque o Bogart (Steve, no filme) não lhe ligava patavina e até chegou a dar-lhe guia de marcha comprando-lhe um bilhete de avião de regresso para a terra dela (tal como também o fez, depois, John Wayne à Angie Dicksson, no Rio Bravo... No Hawks, isto anda tudo ligado!). Já antes Slim lhe tinha perguntado quem teria sido a mulher que o deixou com tão má impressão sobre as mulheres... You know, you dont' have to act with me, Steve. You don't have to say anything. Not a thing. Oh, maybe just whistle. You know how to whistle, don't you, Steve? You just put your lips together and blow.
Pouco tempo antes ela tinha tentado beijá-lo, mas ele nem sequer mexeu os lábios.
A segunda tentativa foi, porém, irresistível, e a coisa foi prolongada...
Reacção dela: It's much better when you colaborate!
A génese do filme tem uma história engraçada que não resisto a contar. O realizador, Howard Hawks, e o Ernest Hemingway (autor do livro em que o filme se baseia) tinham ido à pesca no alto mar e, enquanto o peixe não mordia, divagavam discutindo Cinema e Literatura, puxando cada um a brasa à sua sardinha. Para o Hemingway a base de um bom filme teria de ser uma boa história; para o Hawks, isso era indiferente, já que o fundamental era a mise-en-scene...
- Aposto que sou capaz de fazer um grande filme com base no teu pior romance, disse ele ao Hemingway.
- Qual é o meu pior romance?, pergunta-lhe este.
- To have and have not, sem dúvida, diz o Hawks.
- És capaz de ter razão.
Numa célebre entrevista que deu aos Cahiers du Cinema, Hawks disse que tinha feito o filme a correr porque precisava de dinheiro, mas não vai tão longe que diga se pagou a aposta a Hemingway.
Mas que o filme é enorme, disso poucos duvidarão.
E numa onda de bom cinema e boa poesia, não quero ir-me embora sem vos deixar o curto poema que o Ruy Belo dedicou a Humphrey Bogar e que está incluído naquele célebre livrinho de capa azul da velha e saudosa Dom Quixote:
“Era a cara que tinha e foi-se embora
mas nunca foi tão visto como agora.
O seu olhar é água, pura água
devassa-nos, dá nome mesmo à mágoa
Ganhámo-lo ao perdê-lo. Não se perde um olhar
não é verdade, meu irmão Humphrey Bogart?
mas nunca foi tão visto como agora.
O seu olhar é água, pura água
devassa-nos, dá nome mesmo à mágoa
Ganhámo-lo ao perdê-lo. Não se perde um olhar
não é verdade, meu irmão Humphrey Bogart?
Colaboração de Luís Miguel Mira
Nota do editor:
O texto do Luís Miguel Mira foi escrito, há uns bons pares de anos, no decorrer de uma brincadeira entre amigos.
Dado que a Cinemateca, amanhã, pelas 15,30 Horas, na Sala Dr. Félix Ribeiro, exibe Ter ou não Ter , resolvi recuperá-lo.
O texto do Luís Miguel Mira foi escrito, há uns bons pares de anos, no decorrer de uma brincadeira entre amigos.
Dado que a Cinemateca, amanhã, pelas 15,30 Horas, na Sala Dr. Félix Ribeiro, exibe Ter ou não Ter , resolvi recuperá-lo.
TO HAVE AND HAVE NOT
Ter e Não Ter
Ter e Não Ter
de Howard Hawks
com Humphrey Bogart, Lauren Bacall, Walter Brennan, Marcel
Dalio, Dolores Moran
Estados Unidos, 1944 – 99 min / legendado em português
O encontro do mais mítico par da história do cinema: Bogart e
Bacall, de uma forma não menos mítica. Na realidade, o desafi o
que Hawks se impôs foi o de arranjar a Bogart uma mulher tão
insolente como ele, capaz de lhe responder à letra. O primeiro
encontro (quando ela vai ao quarto dele pedir-lhe lume) é um
daqueles momentos que se tornaram lendários, com a réplica
dela (“Se precisares de mim… assobia”). Vagamente inspirado
em CASABLANCA, mais do que no conto de Hemingway, é,
de novo, uma história de resistência e de resistentes franceses
contra o governo francês de Vichy na Martinica.
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