quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

UMA FORMA DE RESISTÊNCIA


Os jovens são frequentemente gente de fé (se a Natureza fosse para aqui chamada, diria que «naturalmente»). Embora «os» jovens seja apenas um conceito e bem saiba que «é preciso, imperioso e urgente» desconfiar dos conceitos. Na Natureza não há conceitos, há indivíduos, e mesmo esses são seres mutantes, desiguais de si mesmos. Pensamos com conceitos, mas o pensamento é um exercício de cepticismo. E algo que, pensando, se aprende é a ser céptico em relação aos conceitos.
Acreditei em muitas coisas ( e, hélas!, em muitas pessoas) na juventude. Muitas das coisas e conceitos em que acreditei tinham afinal um rosto sórdido, e a mair parte das pessoas em cuja fé confiei desertou, desistiu de «transformar o mundo e mudar a vida» e anda hoje por aí a tratar da «vidinha».
Tudo se desmoronou? Não. Como nos livros de Astérix, uma pequena aldeia resiste ainda e sempre ao invasor, a da amizade (que é o mais elevado modo do amor). E, a família, essa particular espécie de amizade. Sobre tão frágil e melancólica pedra, ou sobre o que dela resta, «construirei a minha igreja». A amizade (um conceito, eu sei) é, nestes dias, uma forma de resistência, talvez a mais radical de todas. Por isso quis que esta primeira crónica do ano fosse sobre a amizade.

Manuel António Pina, crónica que publicou no Jornal de Notícias de 1 de Janeiro de 2007 e copiada de Crónica, Saudade da Literatura

Sem comentários: