É melhor sermos odiados pelo que somos do quer sermos amados pelo que não somos.
André Gide
Velhas histórias.
Corria o Agosto do ano de 2013.
Uma ricaça da treta, filha do Jorge e da Kiki
Espírito Santo, disse ao Expresso gostar de ir para a herdade,
que a família Bessalgado tem na Comporta porque tem a
possibilidade de brincar aos pobrezinhos.
Federico Garcia Lorca
Ficou dito que haveria um retorno à autobiografia deWoody Allen.
E aqui estamos na página 97:
«Harlene e eu vivíamos com os nossos pais e eu telefonava-lhe todas as noites. Fazíamos o que fazem os casais de namorados. Já agora, por essa altura, tinha carro. Adquirira um descapotável Plymouth de 1951 por seiscentos dólares. Tinha alimentado fantasias grandiosas de como um carro iria mudar a minha vida. Libertar-me-ia; poderia conduzir sobre a ponte para Manhattan sempre que quisesse, escapar para Long Beach para visitar velhos poisos nostálgicos, ir até Connecticut numa manhã de primavera para comungar com a natureza. Não faço ideia em que raio estaria eu a pensar; odiava a natureza e, mais do que a natureza, odiava ser dono de um carro. Como todos os objectos mecânicos, tornámo-nos imediatamente arqui-inimigos. Não gosto de aparelhómetros. Não tenho relógios, não ando de chapéu de chuva, não sou dono de câmaras ou gravadores e até hoje preciso da minha mulher para me ajustar o aparelho de televisão. Não tenho computador, nunca me aproximei de um processador de texto, nunca mudei um fusível, enviei um e-mail a alguém ou lavei um prato.
Sou um desses velhos baralhados que neceessitam que lhe inutilizem todos os botões da televisão com fita-cola para que possa usar apenas o botão de ligar e desligar, e os do volume.»
Woody Allen em A Propósito de Nada
Defesa Sem Controle
Mickey Spillane
Tradução: Fernanda
Pinto Rodrigues
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº
241
Livros do Brasil, Lisboa
s/d
O tipo podia considerar-se morto e sabia-o. Encolhido no chão, numa trouxa
informe, só o rosto ensanguentado, de olhos ainda duros e brilhantes, o
identificava como homem.
A senhora Lagarde disse hoje de manhã que a esmola que o governo de António Costa deu aos portugueses é um erro.
Não percebi se vai dar cabo das finanças do Banco Central Europeu, ou se vai transformar numa enorme dor de cabeça para o Fernando Medina.
Aliás eu não percebo nada do que os políticos economistas dizem.
Nunca percebi e não seria nesta idade que iria
perceber…
Vou voltar ao
gin-tónico. Antes isso do que andar a ouvir os comentadores televisivos que a
Itália é uma democracia e que os povos têm sempre razão!... ah! e que agora o novo
aeroporto, seguindo a convergência Costa/Montenegro vai ser em Santarém.
Que dirá Carlos Moedas que afirmou que o novo aeroporto deveria ser perto de Lisboa?
Uma segunda-feira de Outono é um óptimo dia para pegar na autobiografia do Woody Allen, mas acabei por passar pelo Café do Monte e fiquei a ouvir a Ana Cristina Leonardo, o Woody fica para amanhã, ou depois, ou depois:
Sem soluções alternativas, a esquerda agoniza há anos ligada ao balão
de oxigénio dos chamados temas fracturantes e identitários que, na realidade,
inventam mais problemas do que soluções.
Eu vivo numa aldeia mínima, isolada e envelhecida, com meia dúzia de
pessoas. No concelho inteiro não se vendem jornais. Em caso de urgência, o
hospital mais próximo fica quase a 100 quilómetros.
Entretanto, há casais de lésbicas a viverem juntas na mesma casa, umas
nacionais, outras estrangeiras. Há homossexuais. Ninguém quer saber disso para
nada. Como dizia a outra, desde que não o façam na rua nem assustem os cavalos.
Quanto ao racismo, confirmei aquilo que já sabia: os suspeitos do
costume são os ciganos, embora passem meses e meses sem que se veja um cigano.
Já ao marroquino que vem de Espanha e buzina quinzenalmente a vender roupa
fazem-lhe uma festa.
Os poucos jovens querem-se pirar daqui. Não há empregos.
Os poucos empregos que existem dependem da Câmara, do Lar
/Misericórdia, e dos Bombeiros. Não há transportes. É um marasmo. Um dos
peixeiros desistiu de cá vir. O homem que vendia carne, avariou-se-lhe a
carrinha e os poucos bifes que vendia não compensavam o custo do arranjo.
Arrumou as botas e os enchidos.
Eu gosto do sossego disto porque estou a ficar velha e já viajei um
bocado. Mas mais velha e certamente mais aburguesada do que eu está a esquerda.»
Um domingo de Outono é um óptimo dia para pegar no livro que Álvaro Magalhães escreveu sobre Manuel António Pina, poeta, jornalista, príncipe que foi:
«A ciência autoriza-nos a olharmos para os sonhos como uma espécie de
treino da nossa actividade, ou seja, da capacidade de estabelecer todo o tipo
de ligações surpreendentes. Kierkgaard dizia: dormir é o cúmulo da genialidade.
De facto, quando o tenso córtex pré-frontal desliga, ficamos expostos a uma
abundância de ligações inesperadas e ideias estranhas. A maioria delas não
passa de trapalhada surreal. Mas, se tivermos sorte, encontramos as nossas
respostas a meio da noite. E Pina não duvidava disso. Dizia ele: «Durmo com uma
folha e uma caneta debaixo da almofada e a meio da noite quando me ocorre algo
escrevo à escuras.»
«No fim de contas, o meu trabalho durante o dia é tentar verificar como
é que certas coisas escritas à luz da noite suportam a aluz do dia. É como ver
como é que as namoradas são quando acordam.»
Voltamos aos
Sublinhados Saramaguianos.
O último foi
publicado no dia 29 de Julho e aproveitava a boleia de um número da Visão Biografia em que é feito um
Memorial da Sua Vida.
Há dias publicámos
aqui no Cais a fotografia de um VW carocha tirada perto do Restaurante Mattos.
Voltamos à revista Visão Biografia para aproveitar uma
referência ao Restaurante Mattos, tirada da entrevista que Pedro Dias de
Almeida fez ao editor Zeferino Coelho.
Assim:
«Quando chegava a Lisboa íamos muitas vezes jantar ao Mattos, um
restaurante, ali ao pé da Avenida de Roma, onde ele pedia uma posta de bacalhau
assado.»
Por uma outra
referência no José Saramago Rota de Vida
de Joaquim Vieira, existe um outro episódio contado por Esmeralda Cardoso e
Silva, uma trabalhadora da Editorial Caminho:
«Ele gostava muito de bacalhau, e a Pilar nos últimos anos queria que
ele fosse vegetariano. Ele quando cá vinha dizia ao Zeferino “Marca lá um
jantar na Varina da Madragoa para comer um bacalhau.»
Não coloco dúvidas o
quanto Pilar del Rio ajudou o viver de José Saramago.
Quem viu o longo
documentário (125 minutos) «José e Pilar»
de Miguel Gonçalves Mendes, poderá constatar isso e algo mais.
Não gosto
particularmente do documentário, acima de tudo porque revela, nos tempos finais
de vida de Saramago, um exagero de viagens, colóquios, sessões de autógrafos e
que revelam o evidente cansaço de que Saramago dava sinais.
Pilar terá, um dia, dito que a melhor comida do mundo é ovos com batatas, porque é a comida dos pobres.
Ainda o livro de
Joaquim Vieira:
«Saramago reconhecia a hegemonia da mulher na sua vida, e chegava mesmo
a afirmar (mantendo a dúvida se ironizava ou não): «Uma sugestão da Pilar é uma
ordem».
- Há o lobo – diz Duc. – O lobo é soberano, o cão não é soberano. Abdicou da soberania a favor do dono.
Roger Vailland em Fim de Semana
O Outono passeando-se na rua disfarçado de Verão.
O Outono visto por Robert Walser numa tradução de Cristina Fernandes:
«Quando o Outono chega, as folhas caem das árvores para o chão. Aliás, devia dizer: quando as folhas caem, é Outono. Preciso de melhorar o meu estilo. Na minha última redacção escreveram: estilo lamentável. Acho isto preocupante, mas não consigo mudar. Gosto do Outono e pronto. O ar fica mais fresco, todas as coisas sobre a terra parecem de repente tão diferentes, as manhãs são fulgurantes e esplêndidas e as noites deliciosamente frias. Mesmo assim, passeamos até muito tarde. Sobre a cidade, a montanha apresenta cores bonitas, e é triste pensar que elas já anunciam o seu próprio desaparecimento. Em breve vai andar neve pelo ar. Também gosto da neve embora seja desagradável vaguear por aí com os pés frios e molhados. Mas então para que é que servem as pantufas quentes e fofas e a casa aquecida? Só tenho pena das crianças pobres que, eu bem sei, não têm a casa quente. Como deve ser horrível andar às voltas sempre gelado. Não seria capaz de fazer o meu trabalho de casa, morreria, sim, sem dúvida alguma morreria se fosse pobre. Como estão as árvores! Os seus ramos ferem o ar cinzento como punhais afiados e vêem-se corvos, o que raramente acontece. Deixa de se ouvir o canto dos pássaros. A natureza é qualquer coisa. O modo como se veste de novas cores, muda de roupa, põe e tira máscaras! Esquisito. Se fosse pintor, o que não está fora de questão, pois ninguém sabe o seu destino, muito gostaria de ser um pintor do Outono. O meu único receio é que as minhas cores não estejam à altura. Talvez ainda saiba demasiado pouco sobre o Outono. Mas para quê preocupar-me com algo que ainda não aconteceu? Ao fim e ao cabo é ao presente que me devo dedicar. Onde é que já ouvi isto? De certeza que já ouvi estas palavras em algum lado, possivelmente ao meu irmão mais velho que anda na universidade. Daqui a pouco é Inverno, a neve cairá em torvelinhos, oh, estou tão ansioso por isso! Quando tudo fica completamente branco, estudamos muito melhor. As cores podem atrapalhar a nossa memória. As cores são um caos delicioso. Gosto de coisas de uma só cor, de uma só tonalidade. A neve é uma canção bastante monótona. Porque é que uma cor não nos há-de tocar como uma canção! O branco é um murmúrio, um sussurro, uma prece. As cores de fogo, como estas do Outono, são gritos. O verde do pino do Verão é uma canção para várias vozes no tom mais agudo. Será isto verdade? Não tenho a certeza se está certo. Bom, o professor terá a amabilidade de me corrigir. — Tudo no mundo parece voar! O Natal já está à porta, daqui ao Ano Novo é um saltinho e daí à Primavera outro tanto, tudo avança, passo a passo. Seria de tolo querer contá-los. Não gosto de números. Sou mau a matemática embora as minhas notas sejam razoáveis. Nunca serei um homem de negócios, desconfio. Por isso os meus pais não me puseram a praticar. Eu fugiria e com que é que eles ficariam? Mas, já falei o suficiente sobre o Outono? Escrevi umas coisas sobre a neve. Isso vai dar uma boa nota na minha caderneta. As notas são uma invenção estúpida. Tive um "A" em canto e não sei cantar uma nota. Então como é? Deveriam dar-nos maçãs em vez de notas. Mas, depois, acho eu, teriam que distribuir tantas maçãs. Oh!
Mais um livro admirável de Mia Couto.
Com o corer dos dias irei transcrevendo outras passagens do livro. Mas repito a frase que faz parate da citação do apresentar do livro: «Todos aqui estão morrendo não por doença, mas por desmárito de viver.»
Gosto muito deste «desmérito de viver».
Um Rio Chamado Tempo, Uma Casa Chamada Terra
Mia Couto
Capa: Rui Garrido
Editorial Caminho,
Lisboa, Maio de 2021
Estas cartas, Mariano, não são escritos. São falas. Sente-se, se deixe em bastante sossego e escute. Você não veio a esta ilha para comparecer perante um funeral. Muito ao contrário, Mariano. Você cruzou essas águas por motivo de um nascimento. Para colocar o nosso mundo no devido lugar. Não veio salvar o morto. Veio salvar a vida, a nossa vida. Todos, aqui estão morrendo não por doença, mas por desmérito do viver.
Colaboração de Aida
Santos
O Caso do Cadáver Fugitivo
Erle Stanley Gardner
Tradução: Mascarenhas
Barreto
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº
157
Livros do Brasil s/d
Della Street, secretária particular de Perry Mason, entrou no gabinete
do advogado e anunciou:
-Estão ali duas senhoras que desejam falar-lhe com urgência.
- A respeito de quê, Della?
- Não quiseram dizer a uma simples secretária.
Pousou as mãos no corpo dela e procurou desajeitadamente os botões. Ela afastou-o, impassível; tinha os olhos fechados na penumbra e os lábios tensos. Virou-lhe as costas e, com um movimento rápido, desapertou o vestido, que lhe caiu, amarrotado, aos pés. Os braços e os ombros ficaram nus; ela estremeceu de frio e, numa voz inexpressiva, disse:
– Vai para a sala.
Eu despacho-me num minuto.
Ele tocou-lhe nos
braços e encostou-lhe os lábios ao ombro, mas ela não se virou.
Na sala, William
observou as velas que tremeluziam sobre os restos do jantar, entre os quais se
encontrava a garrafa de champanhe, ainda quase cheia. Serviu-se de uma taça e
provou a bebida; estava quente e adocicada.
Quando voltou para
o quarto, Edith estava na cama com as cobertas puxadas até ao queixo, o rosto
virado para o tecto, os olhos fechados, uma ruga fina na testa.
Silenciosamente, como se ela estivesse a dormir, Stoner despiu-se e enfiou-se
na cama ao lado dela. Durante um tempo, ficou deitado com o seu desejo, que se
tornara uma coisa impessoal, que lhe pertencia exclusivamente. Falou com Edith,
como que para arranjar um porto de abrigo para o que sentia; ela não respondeu.
Pousou a mão no corpo dela e, por baixo do tecido fino da camisa de noite,
sentiu a carne por que tanto ansiara. Moveu a mão; ela não se mexeu e a sua
ruga tornou-se mais funda. Ele falou novamente, dizendo o nome dela no
silêncio. Depois, moveu o corpo para cima do dela, suavemente, apesar da falta
de jeito. Quando lhe tocou na macieza das coxas, Edith virou a cabeça
abruptamente para o lado e levantou o braço para cobrir os olhos, reduzida a
uma mudez total.
John Williams em Stoner
A frase do «Escrito na Pedra» do Público de 9 de Setembro pertencia ao empresário Rui Nabeiro:
«Parto sempre do princípio de que todas as pessoas são
boas trabalhadoras. É preciso é saber motivá-las».
Não é apenas uma frase, é o exemplo de toda uma vida.
Olha-se a pessoa e vê-se um homem bom, olha-se o
trabalho como empresário dos «Cafés Delta»
e nota-se que é com a sua filosofia que conseguiu construir uma das mais prósperas
empresas portuguesas.
Se quiserem saber algo mais, leiam a autobiografia de
Rui Nabeiro que José Luís Peixoto desenhou com o título «Almoço de Domingo»
Olham-se outros empresários deste país e ficamos a
saber as reais diferenças que os distanciam do exemplo de Rui Nabeiro.
A maior diferença existe nestas palavras: é preciso
motivar os trabalhadores.
São múltiplas as razões para que possa dizer que Delta é um excelente café.
Os ANOS FUTUROS
«Em outubro, todos os pensionistas com prestações até 5318 euros, isto
é, 12 vezes o Indexante dos Apoios Sociais (IAS), que está nos 443,2 euros, vão
receber mais meia pensão. Mas, em contrapartida, terão um corte na base de
cálculo da atualização regular das reformas em 2023. No final das contas, não
haverá efetivamente um ganho no longo prazo. Pelo contrário, em 2024, os
pensionistas da Segurança Social, com uma prestação média de 501,77 euros, vão
perder 252 euros, no conjunto do ano, ou 18 euros por mês, e os beneficiários
da Caixa Geral de Aposentações (CGA), com uma reforma média de 1341,99 euros,
terão uma redução de 672 euros anuais ou de 48 euros mensais.
Para o próximo ano, como contrapartida do bónus pago em outubro, que
vai custar ao cofres do Estado mil milhões de euros, o governo decidiu cortar
na atualização regular das prestações, que é calculada tendo em conta o
crescimento médio do PIB nos últimos dois anos e a inflação apurada em
novembro. Assim, até 886 euros, o aumento que seria de 8% baixa para 4,43%;
entre 886 e 2659 euros, a subida prevista de 7,64% passa para 4,07%; e, entre
2659 euros e 5318 euros, a atualização que seria de 7,1% desce para 3,53%. A
proposta ainda precisa do aval da Assembleia da República, mas a aprovação está
garantida pela maioria absoluta socialista.»
Salomé Pinto no Diário de Notícias
AGNÉS VARDA
"Há em Agnès
Varda uma poética que se confunde com uma política do quotidiano. Interessa-lhe
tudo o que, a um olhar mais desatento, não tem interesse, interessa-lhe o que
dificilmente se vê, o resíduo, o rejeitado ou marginalizado, a pequena
história, interessa-lhe interrogar a singeleza dos objetos pessoais ou
desconhecidos que nos contêm ou nos rodeiam", assim descreve António
Preto, diretor da Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO), a essência da ação
"amadora" da belga que se radicou em França, aí deixando a sua pegada
artística. O texto intitula-se, muito adequadamente, Elogio da Curiosidade,
e está no livro Agnès Varda: Luz e Sombra, um belíssimo volume
bilingue que acompanha a exposição patente no Porto até janeiro de 2023.
CARLOS III
Não é um rei
consensual.
Após a morte de Isabel
II alguns países da Commonwealth sair.
O rei enfrenta outro
tipo de problemas com a Escócia, Irlandas e País de Gales.
QUESTÕES DE SAÚDE
Hospitais do Porto e de Lisboa têm casos de idosos que
ficaram mais de um ano à espera de respostas. Sem condições para voltarem a
casa, utentes ocupam centenas de camas no SNS.
Entram nos hospitais
por questões de saúde, mas ficam internados meses a fio sem necessidade, por
falta de vaga em lar ou em cuidados continuados. Regra geral, são idosos
vulneráveis, com parcos recursos e sem retaguarda familiar que lhes permita
regressar a casa.
CAFÉ DO MONTE
«Desde que o avanço
dos ucranianos e o recuo das tropas russas foi anunciado e confirmado, anda
muita gente a cantar vitória antes de tempo, ou seja, antes do Inverno.
As últimas notícias,
por muitos festejadas, dão conta de que Putin andaria a levar porrada lá na
terra dele, na consequência do desaire militar que já vi comparado, confirmando
a pauta sempre hiperbólica dos hinos guerreiros, ao desembarque dos Aliados na
Normandia (e escusado será lembrar, invertendo a ordem dos factores da frase de
Clemenceau: a música militar está para a Música como a justiça militar está
para a Justiça). »
Ana Cristina Leonardo em Meditação na Pastelaria
MAIS AJUDA
Os Estados Unidos vão
enviar uma nova remessa de armamento e de munições para a Ucrânia, desta vez no
valor de 600 milhões de dólares (sensivelmente a mesma quantia em euros),
anunciou o Pentágono na madrugada desta sexta-feira. Desde o início da invasão
russa, há quase sete meses, o Congresso norte-americano já desbloqueou 15,1 mil
milhões de dólares para ajuda militar à Ucrânia — mais de seis mil milhões só
nas últimas seis semanas.
Contra as
expectativas do Presidente ucraniano, Zelensky, o novo pacote ainda
não inclui o sistema de mísseis de longo alcance MGM-140 (conhecido pelo
acrónimo ATACMS), com o qual o Exército da Ucrânia poderia atingir alvos a 300
quilómetros de distância.
Viola Interdita
Manuel Alberto
Valente
Capa: Armando Alves
2 desenhos de José
Rodrigues
Colecção de Poesia nº
1
Edição de Autor,
Porto, 1970
Conversa Com Fernando
Pessoa no Martinho
A casa continua como quando aqui paravas.
Talvez sejam os mesmos que agora a povoam
destas conversas sonolentas e cruzadas.
Ali ao longe o rio persiste em navegar
e só as águas envelheceram. O resto é
a cidade quer dizer o nevoeiro
que quando desembarcaste. Fala-se na esperança
e acredita-se no medo. O resto é a cidade
que cantaste e te desconheceu
e ainda desconhece os que procuram
o violino de palavras que criaste.
O Conselho de Ministros português aprovou, ontem, o decreto que declara três dias de luto nacional pela morte da Rainha Isabel II.
Diz o nosso governo
que a Rainha Isabel II marcou «profundamente»
a segunda metade do século XX e o primeiro quartel do século XXI.
Sempre entendi a Rainha
como um mero bibelot de um país que adora a monarquia, esquecendo, ou fazendo
por esquecer, o que a monarquia lhes tem custado.
Tirando a colecção de
chapéus que usou em vida, a figura da Raínha é de uma vulgaridade que em nada influenciou
o mundo em que viveu, se exceptuarmos a colecção de chapéus que usou em vida, mas
por chapéus são bem preferíveis os queAudrey Hepburn Sou, em Ascott, no filme My Fair Lady.
Para outra
excentricidade da coroa britânica, cite-se que o The Guardian noticiou que 100 funcionários da Clarence House, a
antiga residência do rei, tinham os seus empregos em riscos.
Segundo o jornal britânico, os funcionários foram notificados de que podiam perder os seus empregos após o rei e a rainha consorte se mudarem para o Palácio de Buckingham, residência oficial dos monarcas na capital. O jornal adiantou ainda que os trabalhadores não são representados por nenhum sindicato.
Numa altura em que o
Reino Unido ainda se encontra num período de luto, o Sindicato dos Serviços
Públicos e Comerciais descreveu a situação sobre os cortes de postos de trabalho
neste período conturbado como «nada menos do que insensível».
Deus Salve o Rei!
«Detesto dinheiro. A sério. Acho o dinheiro das coisas mais sujas nesta vida. Por isso me encarrego de dar cabo dele assim que tenho algum. As pessoas doentes por dinheiro enervam-me. Enervam-me ainda mais as que não se contentam em zelar pelo que têm ou deixam de ter, mostrando-se deveras preocupadas com o modo como os outros gastam o que é seu. Nunca me preocupei com o dinheiro dos outros e, tanto quanto me é possível, faço por não me preocupar com o pouco que é meu dando cabo dele quanto antes. Só há um vício pior do que a avareza, é ser-se sovina pelo que é dos outros e não seu».
HMBF em Antologia do Esquecimento
Deitei a tarde pela
janela e fiquei só
com a linha onde a luz se suspendeu
num tom rosado, tão calmo, quase
artificial neste fim de Abril, a descer sobre
o azul da minha voz. Pus-me a fumar
por cima de um caderno, enchendo
e virando páginas, um punho a apoiar
este rosto agarotado e um dedo
passando pela boca que há muito
não se embeiça por sentidos razoáveis.
Não sei se tentava voltar aos braços
de alguma remota ilusão, se me fiquei
por um circuito de estilhaços ou qualquer
outra lesão silenciosa. Mais óbvios
todos os destinos, dói mais ao princípio:
ver como os dias vão saindo repetidos. E daí,
a repetição talvez seja só eu, esta pequena
intriga ou vago remorso que me escreve.
Não era como se tivéssemos muito
a esperar das ruas, mas saímos
e depressa demos com o labirinto de excessos
na noite que o corpo nos exigia. Os dois
à boleia do tempo, juntando mais
umas horas a esta idade que tresanda já
a maus hábitos, paixões sem interesse
e fantasias voltando a casa destruídas,
cada vez menos e menos inocentes.
Por aí a imaginação perdia
toda a confiança, dócil, foi-se ajoelhando
e enfrentou confissões ordinárias,
sepultando os sorrisos
que nos caíram entre os lábios.
Esquecemos tantas outras vidas.
Sentados de costas para a entrada,
no Saloio da 24, insististe que a
vidinha,
enfim, lá tinha dado connosco. E que
lugar
tão triste para o admitirmos, entre a
fatia
de pizza, o rissol e os copos de
plástico
que não foram suficientes para
afastar-nos
da razão, nem sequer distrair os
sinónimos
que chegam, às vezes, demasiado cedo,
quando o coração é um ódio
tão natural, uma forma de pedir
que não contem mais connosco.
Um tudo-nada comovidos, aguentou-nos
um silêncio que também já não era só nosso.
Arrumados para estatísticas:
eu levando um curso aos chutos vai agora
para uns cinco anos, e tu, diplomado
e num primeiro emprego, a seres pago
para gastares com a infelicidade
as incertezas que te restam. Os dois,
como é normal, mimando e entretendo
a carne agarrada aos ossos.
Diogo Vaz Pinto em Resumo: a poesia em 2009
Legenda: cartaz do
filme Vivre sa
Vie de Jean-Luc Godard, 1962.
Marcada a Fogo
Bem Benson
Tradução: Mascarenhas
Barreto
Capa: Luís de Freitas
Colecção Vampiro nº
173
Livros do Brasil, Lisboa s/d
Pouco depois das dez horas dessa segunda-feira de agosto, seguia ao
volante do carro-patrulha nº 51, pela National 2, a oeste de Concord, Massachusetts. À minha frente, tinha a lista dos
veículos desaparecidos, durante o último fim-de-semana, e procedia à
verificação dos números dos carros que se cruzava, com o meu. Devo confessar
que o fazia maquinalmente, pois o meu espírito estva preocupado com outra
coisa. Com efeito, pensava no meu próximo casamento, marcado para o princípio
de Setembro, e perguntava-me a quantos dias de férias teria direito.
O Eduardo gostava de cinema, gostava de fitas, como gostava de dizer.
Se ainda andasse aqui ao nosso lado, a morte de Godard
não o deixaria indiferente.
O itinerário que hoje vou buscar faz parte de É Assim Que Se Faz a História,
concretamente um fragmento comentado de uma carta, que também é uma
dedicatória.
«Quase agarravas as nossas austrálias, e o tempo perdido, quando te juntavas a tipos com free man escrito nas costas e ouvias o locutor do Europe 1 perguntar: Porque vêm aqui? Respondias com eles: yes! yes! Falavas, claro, de Obaldia, Boris Vian e, sempre, de Godard. Et maintenant, le cinema c’est Jean-Luc Godard, dizia Aragon. Tu comentavas: foi a coisa mais acertada que disse até hoje. Mas o tempo era de escuridão total: as trevas.»
Eu repito: sim, aquele tempo era de escuridão e trevas.
Em quase tudo sou um poço de limitações.
Apesar de começar, desde miúdo a ver filmes nas cadeiras
de pau do Cinne-Oriente, é basto vasta a minha ignorância cinematográfica.
Se exceptuar os extraordinários O Acossado, Viver
a Sua Vida, Pedro, o Louco, nunca me constituí um godardiano.
Augusto M. Seabra no Público de
6 de Dezembro de 2018:
«Sendo indubitavelmente um dos autores maiores da arte cinematográfica, Jean-Luc Godard não deixa de ser muitas vezes cabotino e irritante. Mas também sucede ser magnífico, de uma beleza convulsiva como em O Livro da Imagem.»
«Uma autopromoção de um programa da rádio Observador na sexta-feira perguntava: "Como vamos viver sem a Rainha Isabel II?". Depois deixava um número de telefone a convidar os ouvintes a discutir tal putativa orfandade com os jornalistas José Manuel Fernandes e Helena Matos. Esta pequena vaga do maremoto mediático que se seguiu ao falecimento, na véspera, da monarca britânica, com uma torrente de jornalistas, comentadores, historiadores e diplomatas portugueses a lançar ondas e ondas de relatos, comentários e textos sobre o tema, numa inundação asfixiante que se vai prolongar, pelo menos, até ao dia do funeral da monarca britânica (e para o qual, de resto, também contribuo), deixou-me perplexo.
A pergunta colocada pelo Observador pressupõe que eu, cidadão
português, não-britânico, eleitor de uma República que gritou na versão
original do seu hino "contra os
bretões, marchar!, marchar!", devo sentir a falta da rainha Isabel
II?
Que mecanismos criam esta expectativa de simpatia lusitana para com a
mãe do agora Carlos III?
(…)
Esta atração de tantos jornalistas portugueses pela monarquia inglesa,
este encanto pela "ideia agradável" de ver uma família no trono, este
sentimento de perda de uma "mãe da nação" (que não é da nossa nação)
pressupõe uma disposição para a aceitação de um domínio aristocrático desse
tipo para Portugal, de vontade de adoção de um sistema com "partes
dignas" que sirva de "disfarce" para a impopularidade das
"partes eficientes" da governação, de redução do poder popular (e
mesmo da classe média) nas instituições da nossa democracia.
Esta cumplicidade com a monarquia britânica que tantos jornalistas
portugueses proclamam, mesmo inconscientemente, é conivente com a ideia de
retirar poder aos mais fracos para fortalecer o poder dos mais fortes.
Por mim vivo bem sem a rainha Isabel II, uma pessoa respeitável e com
evidentes méritos, mas que foi peça de um mecanismo de perpetuação de
privilégio da classe aristocrática o que, para mim, é inaceitável por ser a
eternização de um sistema onde uma parte da humanidade, por direito de
linhagem, explora outra parte da humanidade. Isso chama-se injustiça.»
Pedro Tadeu no Diário de Notícias
Terá decidido tudo, inclusive a sua própria morte.
«Para o realizador que acreditava que o cinema era algo que estava entre a arte e a vida, decidir a hora da morte era o mais acertado a fazer. Afinal, foi Godard que, perante a pergunta “qual é a sua maior ambição na vida?”, respondeu: “Tornar-me imortal… E depois morrer. Conseguiu.»
Quando Marilyn Monroe morreu, tinha ele 17 anos.
Súbita e violentamente leu a notícia na 1ª página de O Século, numa esplanada de praia na Trafaria.
Tinha do cinema a ideia daquela feira de luzes e espantos, captada na plateia de pau do Cine-Oriente. Os filmes eram com e não de, e Marilyn, doce Marilyn, outras mais, constituíam as paixões platónicas, os anos da inocência, o bater mais apressado do coração. Quero permanecer apenas na fantasia do homem comum. Só muitos anos depois iria apreciar os dotes de artista daquela loira burra, como então muitos lhe chamavam.
O cinema é um mundo enorme de gente, um todo em que não se consegue saber onde está a ponta do novelo. Mas que seria o cinema sem Marilyn Monroe?
Foi em 5 de Agosto de 1962, uma noite ao deitar-se quando se sentiu sozinha ou suspeitou que tinha errado a vida, para citar o belíssimo poema de Ruy Belo sobre a morte de Marilyn, um telefone que tocou em busca de ajuda, que alguém ouviu, sabia quem era, mas não quis atender.
Meses antes cantara para John Kennedy “Happy Birthday Mr. President”. Nem precisa de olhar a fotografia para reconstituir a performance daquela noite, a apresentação feita por Peter Lawford, depois o sussurro mais sensual de que há memória num happy birthday, aquela silhueta na noite, aquele vestido cingido ao corpo, que em Outubro de 1999, foi vendido por 1,26 milhões de dólares num leilão da Christie’s. Provavelmente terá sido aí que se começou a desenhar, o suicídio organizado de Marilyn Monroe e que culminaria na descoberta do seu corpo deitado na cama, a mão a apertar o auscultador do telefone, a tal chamada que alguém não quis atender.
Sou a mulher mais bonita do mundo mas não tenho ninguém com quem sair este fim-de-semana, confidenciou a alguém.
Dez anos de carreira,
doze filmes, todos eles memoráveis, inesquecíveis. Fica por saber, não fora a
morte brutal, até onde teria chegado Marilyn.
Billy Wilder, esse cínico genial e maravilhoso realizador, disse que Deus deu-lhe tudo e que Marilyn poderia fazer o que quisesse em cinema.
Vinicius de Morais que ela foi um dos seres mais lindos que já nasceram e se há quem disso possa falar, Vinicius estava completamente à vontade.
Irving Berlin
confessou um dia que Marilyn Monroe foi a melhor intérprete das canções que
compôs.
A criança feita mulher, abandonada nas linhas paralelas da passagem de nível sem guarda (as duas linhas de todas as mais paralelas e as mais negras), sem que o medo a deixasse fugir e sem nós conseguirmos gritar-lhe (como nos pesadelos) que se afastasse. Todo o tempo dela foi tempo da morte a vir, como escreveu João Bénard da Costa nos 40 anos da morte de Marilyn.
A minha cabeça vai estoirar.
Os comprimidos não fazem efeito.
Já não sei o texto. A tristeza afoga-me.
Não há ninguém com quem se possa falar.
Daqui a pouco tenho de sorrir.
Sorrir é uma das coisas que faço bem.
Consigo até sorrir com os olhos.
Poucas pessoas conseguem sorrir assim
Marilyn Monroe morreu há 47 anos.
Suicídio? Assassínio?
Sabe-se apenas que a sua morte é uma história mal contada, tal como leu numa crónica do Eduardo Guerra Carneiro: Ainda há estrelas no céu.
(25 de Agosto de 2009)
Legenda: fotografia
de Elliot Erwitt
Cada um está só sobre o coração da terra
Trespassado por um raio de sol;
E de repente é noite.
Salvatore Quasimodo
Assim acontece em Poemas da Cidade de María Jesús
Echevarría.
Apenas a continuação
da ilustração da capa feita propositadamente para este livro por Maria Malheiro.
Para outras referências há que ir ao miolo do livro, onde encontramos a Nota Final feita pelo tradutor Paulo da Costa Domngos:
«María Jesús Echevarría, nascida em Madrid, em Setembro de 1932, aí veio a falecer, à beira dos trinta e um anos de idade (Agosto de 1963), tendo vivido em Nova Iorque o tempo suficiente para colher a amarga lição que este seu livro testemunha. Precisamente, é a sua experiência como estudante universitária e, em simultâneo, correspondente jornalística, o que aqui lemos transposto em arte. Não devemos, todavia, estender-nos em considerações literárias muito para além do que esta mulher-intelectual nos legou. Versos escritos em tom epistolográfico – e que as respectivas dedicatórias confirmam –, são eles notícia da desumanização e da hipocrisia da grande metrópole, a Grande Maçã podre, capital de um império que se posicionou, após a Segunda Guerra Mundial, como o polícia do mundo. Lírica sobre um cavername de ferro e betão, lírica corrida de asfalto, lírica de um desespero trágico. E mais não digo»
Talvez pudéssemos nós ir um pouco mais adiante, recolhendo, por fora, outros pormenores:
A América vai-se
transformando numa decepção sem fim à vista.
Joe Biden arrisca-se
a ficar na história dos Estados Unidos, como o pior Presidente de sempre.
Será mesmo possível?
Depois
dos Bushs, do Trump?
Para além de ter
feito tudo para provocar a Guerra na Ucrânia, apareceu há umas semanas em
conluio com os déspotas da Arábia saudita.
Antes de ser eleito,
Biden garantiu aos americanos, e ao mundo, que constituiria a Arábia Saudita
como um Estado Pária, mas já apareceu em conversas com toda aquela gente e
manifestando-se como um «parceiro comprometido com o Médio Oriente».
Nestes breves poemas
de María Jesús Echevarría ressalta parte evidente do que é a grande maçã podre.
«Dai-me, Senhor, o estrépito, o ruído e a miséria.», lê-se no
primeiro verso do poema «Oração da cidade e eu» de Echevarría.
Poemas da Cidade
María Jesús
Echevarría
Tradução: Paulo da
Costa Domingos
Capa: Mariana
Malheiro
Ilustrações: Mariana
Malheiro
Barco Bêbado, Lisboa,
Agosto de 2021
Subpoema
E tu, monte de
trapos.
Boneco, marioneta
de um teatro tristíssimo.
Manipanso
carregado de terrores
seguindo em fila
como um colegial da vida.
E tu, como uma
vara frágil e antiga.
Feito de angústia,
irmão meu.
Assustas-me sempre
que se atiça
essa chispa
fortíssima dos teus olhos,
esse cílio que
incessantemente agitas
e esconde a
delicada amiba do teu espírito.
Sei muito acerca
de ti. Fizeram-te
de um raro
material branco e brilhante,
verteram sobre ele
a aborrecida obrigação
da existência.
Assim, feito de
trapos.
Boneco de
serradura.
Os teus modos
teatrais de papelão
vão ficar em pasta
com a chuva
e morrerás em
lágrimas.
Ainda que também
pudesses morrer de queitude
e somente abrir os
olhos
nas Festas à Vida
dos outros.
Como os altos e
empoeirados monstros
nos esconsos das
nossas catedrais.
debaixo da terra, sem amigos, sem mulheres.
Confio-te um grande segredo:
As tulipas murchas não reflorescem mais.
Omar El Kahyyam
Essa triste personagem que dá pelo nome de Isabel Jonet, dona do Banco Alimentar Contra a Fome, sucessora-mor das tipas do salazarista movimento nacional feminino, e não sabe, ou não quer dizer, mais o quê, face à esmola que o governo de António Costa deu aos portugueses, diz-nos que é necessário explicar às pessoas que «Quando se atribui uma ajuda deste tipo, única, é importante fazer uma pedagogia e explicar às pessoas que não podem ir gastar estas verbas todas de uma só vez até porque isso pode ter um efeito que é contrário ao nível da inflação.»
Há manhãs em que lhe
apetece enfrascar-se como um velho cossaco.
Mas perde-se a ler jornais antigos.
Num deles, este final de crónica de Ana Leonardo Coimbra:
«Creio que foi no
livro onde se reúnem as conversas travadas entre Marguerite Yourcenar e
Matthieu Galey durante longos anos (De Olhos Abertos, Relógio d’Água,
2011) que li, apadrinhada pela autora do extraordinário A Obra ao Negro,
a seguinte ideia: temos a obrigação moral de morrer menos estúpidos do que
nascemos.
Yourcenar dizia-o,
claro, de modo mais sofisticado, decerto mais luminoso. Trata-se de um
propósito nobre. Tanto mais nobre, quanto inútil. Porque quando pensamos estar
quase, quase, mesmo quase a ficar menos estúpidos (ou seja, mais gregos e
socráticos…), Bumm! Crash! Palft! FIM e lá vamos nós navegando Lethes fora com
a Ceifeira ao leme.»
A morte da Raínha Isabel II inunda os últimos dias e vai prolongar-se.
Ao passar fugazmente pelas televisões, passando os
olhos pelos jornais, chegou a pensar se o país onde nasceu, tinha virado
monarquia.
São absurdos que não tem mesmo vontade de entender.
Lembra-se do avô que, depois de dizer o nome, sorridente, declarava-se: «republicano histórico, benfiquista e anti-clerical.»
Oh, como sou ingénuo! Eu a pensar que iria passar uma semana em Marrocos imerso numa religião e cultura diferentes e, afinal, percebi uma vez mais que nada nos separa em lugar nenhum. Como são parecidos todos os humanos, vistam o que vistam, rezem o que rezem, comam o que comam, bebam o que bebam!
Vivemos
todos em função das mesmas ambições, dos mesmos medos e até da mesma moral. O
que há de diferente entre os vendedores que nos tentam vender gato por lebre
num qualquer
bazar de Fez e governantes como Fernando Medina ou ex-jornalistas como Sérgio
Figueiredo?
E
é aqui que entra o pretexto desta crónica, o vinho, bebida necessária para nos
apaziguar com o país e o mundo e que, como se sabe, ainda é feita com uvas.
Chegou finalmente a hora de as colher, esse momento onírico e vital para os
viticultores. Durante dias ou semanas, o mundo cumprir-se-á apenas entre a
vinha e a adega. Em breve tudo será uma saudade, mas, por agora, nem a dureza
do trabalho, nem a maldade do ano, impedirão a grande festa
das vindimas, um parêntesis de alegria no meio de tanta desilusão e
vergonha. Quem quer uma tesoura?
Pedro Garcias Público 20 de Agosto
Lido não sei onde e apontado na ponta de um guardanapo:
«Uma coisa é uma bebida
com sabor a café e outra é o próprio café».
No interior da flor
palpita uma esmeralda viva.
O colibri esqueceu o seu antigo ninho.
Pedro Barra Y Valenzuela em Rosa do Mundo
(Tradução de Maria Etelvina Santos)
Já vos disse várias
vezes e não me canso de o repetir…
Para os parcos
conhecimentos que tenho, em muito contribuiu, ainda assim, o Cinema.
O Cinema levou-me a
belíssimos lugares longínquos. Deu-me a conhecer romances, peças de teatro,
escritores, músicas e músicos, lugares e factos históricos relevantes, enfim,
um sem número de coisas magníficas que depois pude aprofundar, ou não,
consoante a vontade e a disponibilidade.
Mas o Cinema não se
limitou a abrir-me os olhos… Ajudou-me também a fechá-los e a sonhar com
muitas das coisas boas que algum dia gostaria de fazer na minha vida, tais como
poder viajar e conhecer o Mundo.
E quando necessário,
o Cinema foi também um fiel companheiro nas horas mais difíceis. Tal como muito
boa gente, quantas vezes fui eu ao Cinema para, durante esse curto pedaço de
tempo, procurar arejar a cabeça dos problemas e das realidades da vidinha…
Quantas vezes recorri eu a esse porto de abrigo seguro para me proteger das tempestades…
Quantas vezes levei
eu aos lábios essa taça para tentar fazer com que uma embriaguez qualquer me
levasse para fora das realidades durante uma hora e meia, ou um pouco mais, se
tivesse sorte…
Por muito graves que
pudessem ter sido os meus problemas, após um filme que me tivesse sabido
bem voltava sempre à tona da vida com um sorriso no rosto.
Mas sinto que já me
estou a desviar demasiado da rota prevista, pelo que haverá que retomar o fio à
meada e explicar por que motivo tive eu de evocar o Cinema.
É que não fora o Cinema e muito dificilmente teria ouvido falar de Orgosolo, um lugarejo perdido nas montanhas do maciço central da Sardenha, numa região que se chama Barbaglia. Devido ao seu isolamento e difícil acesso, estas montanhas em torno de Orgosolo foram, durante muitas décadas, local privilegiado para o esconderijo de criminosos, bandidos e foragidos de toda a espécie.
Foi pela mão de
Vittorio De Seta (não confundir com o homónimo De Sica…) que cheguei a
Orgosolo.
De Seta é um daqueles
bons realizadores que, como Ermanno Olmi, com quem tem algumas afinidades,
nunca procuraram os holofotes da fama e sempre foram fiéis a um conceito muito
próprio de Cinema, do qual nunca se desviaram.
Siciliano natural de
Palermo, estudou arquitetura, mas acabou por dedicar a sua vida a registar para
a posteridade os gestos da vida quotidiana de trabalho dos mais pobres e mais
desfavorecidos. Os pescadores, os camponeses, os mineiros da Sicília e os
pastores da Sardenha são exemplos disso, em documentários de muito curta
duração, quase sempre sem palavras para além de um pequeno texto introdutório.
Para quem se interessar, encontram-se disponíveis no YouTube.
Em 2015 a nossa
Cinemateca dedicou um pequeno ciclo a De Seta, e foi aí que vi pela primeira
vez “Banditi a Orgosolo” (1961), a sua primeira longa-metragem de ficção,
digamos assim, porque a vertente documental continua a ser predominante.
É um filme belíssimo,
desta vez a preto e branco (todos os seus anteriores documentários são a
cores), de um neorrealismo tardio, quase todo filmado em exteriores na aldeia e
nas montanhas de Orgosolo, com recurso aos próprios habitantes da região, os
quais não só participaram enquanto atores como também colaboraram na construção
dos diálogos.
O tema central do filme acaba por ser a miséria de toda aquela região e dos camponeses e pastores que nela procuram sobreviver, através da história de um pobre pastor que, por força das circunstâncias e por se recusar a ser um delator de bandidos, se vê obrigado a transformar-se, ele próprio, num bandido.
É magnifica a maneira
como De Seta articula todos os elementos que tem ao seus dispor, ao ponto de
não conseguirmos perceber se os principais personagens do seu filme são os
seres humanos, os animais ou a própria paisagem, tal a força que todos eles
têm. Foi a propósito deste filme que Martin Scorsese, no seu conhecido
documentário sobre o Cinema Italiano, afirmou ser De Seta “um antropólogo
que se expressou com a voz de um poeta”.
Mas sinto que, uma
vez mais, estou a divagar e que não foi para falar de Cinema que aqui vim hoje.
A verdade é que este
filme me fez desejar saber um pouco mais acerca de Orgosolo e foi no âmbito
dessas pesquisas que fiquei a saber, não só da pequena história dos bandidos de
que atrás vos falei, mas também da existência dos murais que hoje tornam
célebre este lugarejo. Parece que foram inventariadas em toda a Sardenha 250
pinturas murais, 150 das quais se encontram em Orgosolo.
A origem destes
murais é curiosa…
Tal como sucedeu na
Sicília, as populações das regiões mais desfavorecidas da Sardenha demonstraram
sempre uma certa animosidade face ao “Poder Central” por se terem sentido
votadas ao ostracismo durante décadas. Nos anos que se seguiram ao final da II
Grande Guerra, enquanto na Metrópole se vivia o célebre “milagre italiano” de
recuperação económica, com forte criação de emprego e melhorias gerais ao nível
dos salários, da Habitação, da Saúde e da Educação, muitas destas regiões
rurais das ilhas foram mantidas num relativo estado de pobreza e estagnação, bem
percetíveis no filme de De Seta .
Ao longo dos anos
foram vários os sinais de insatisfação e de rebelião das gentes de Orsosolo
contra o tal “Poder Central”, mas a sua demonstração mais evidente parece ter
sido o que ficou conhecido como a “revolta de Pratobello”, em 1969, que
consistiu numa manifestação organizada de toda a população contra a instalação
de uma base militar nos campos de pastorícia comunitária nas imediações da
aldeia.
Estas manifestações
tiveram algum impacto a nível nacional e o projeto acabou por ser posto na
gaveta.
Foi, precisamente,
pela atenção que esta batalha suscitou a nível nacional que uma “troupe” de
teatro de intervenção de Milão de inspiração anarquista, que dava pelo nome de
“Dionisio”, se deslocou a Orgosolo e, entre outras “performances”, deixou na
aldeia um primeiro mural que representava o mapa de Itália com um grande ponto
de interrogação no lugar onde deveria estar localizada a Sardenha, para
evidenciar a falta de interesse que o Governo Central devotava à ilha.
Este primeiro mural
suscitou a atenção, mas não teve sequencia, até que em 1975 Francesco del
Casino, um comunista de Siena que já há alguns anos exercia na aldeia a
profissão de professor de desenho resolveu desafiar os seus alunos a fazerem
pinturas alusivas à comemoração dos 30 anos da Resistência antifascista e da
derrota do nazismo. Mas em lugar de serem feitas em papel e posteriormente
expostas, essas pinturas seriam feitas em mural, para chamarem a atenção de
mais gente e perdurarem no tempo.
A iniciativa foi um
sucesso e a partir daí Francesco del Casino e os seus sucessivos alunos não
mais pararam de pintar as paredes das casas da aldeia. Embora, com o passar do
tempo, outros pintores locais como Pasquale Buesca e Vincenzo Floris se lhes
tenham vindo juntar, terão sido eles os responsáveis pela maior parte dos 150
murais que foram, desde então, desenhados na aldeia.
Os temas destes
murais são variados, mas quase todos eles têm um ponto em comum: serem
mensagens políticas contra o colonialismo, a guerra e as injustiças sociais,
evocando também os prolemas do quotidiano da região, tais como a emigração, a
pastorícia, a educação, a saúde e a necessidade de preservação das tradições
locais. Um curioso mural apela à emancipação das mulheres evocando a morte de
129 mulheres trabalhadoras, na sua maioria italianas, num incêndio ocorrido em
1908 numa fábrica em Nova Iorque.
Não faltam,
igualmente, apelos à independência da Sardenha e homenagens a figuras
históricas nacionais, tais como Garibaldi, Antonio Gramsci e Giovanni Maria
Angioy, que vim a saber tratar-se de um herói local da luta contra os
privilégios dos antigos senhores feudais
Mas nas paredes de
Orgosolo a solidariedade internacional dá provas de estar bem viva porque
muitos são os murais que nada têm a ver com a região e se referem à Bolívia e a
Che Guevara, ao Vietname, ao Chile de Salvador Allende, ao conflito
israelo-palestiniano, ao 11 de Setembro em Nova Iorque, à Guerra do Iraque e
até a simples mensagens antiguerra com recurso à figura de Charlot. E não deixa
de ser curiosa a existência de um mural dedicado a Larzac, localidade no Sul de
França que, entre 1971 e 1981, se bateu, igualmente, contra a expansão de uma
base militar lá existente.
E ainda existem
outros murais que mais não parecem ser que simples homenagens a pintores
célebres: Diogo Rivera, como não podia deixar de ser, enquanto precursor do
mural de intervenção no México, juntamente com Orozco e Siqueiros, mas também
Frida Kahlo, Picasso, Fernand Léger e Miró.
Quanto a estilos,
há-os para todos os gostos nestas pinturas, do “Naif” ao Impressionismo, ao
Cubismo e ao Surrealismo…
De férias pela
Sardenha há poucos anos atrás, não poderia deixar de vir visitar esta aldeia e
os seus murais, e isto para grande desespero da minha Querida Mulher, que teria
preferido, mil vezes, ir espraiar-se junto às águas azul turquesa da
Costa Esmeralda ou pavonear-se com o “Jet-Set” na zona muito seleta de Porto
Cervo.
E ainda por cima em
“lua de mel”…!!! Quem se lembraria de ir, em “lua de mel”, para as montanhas de
Orgosolo, dizia-me ela…??? Só um doido com certeza, e fiquem sabendo que este
foi o epíteto mais suave de todos com que me brindou…
Deixo-vos uma
extensíssima reportagem fotográfica, uma vez que as pinturas têm de ser
apresentadas em duplicado: em grande plano para serem percetíveis e em plano
mais afastado para que se visualize o seu enquadramento urbano.
Para quem, como é o
meu caso, não domine o italiano nem a História de toda esta região, alguns
destes murais têm mensagens dificilmente decifráveis. Mas valem pela
pintura…
Quanto a Orgosolo em
si, trata-se de uma aldeia simples, sem qualquer outro tipo de apelo turístico
que não sejam os seus murais, a simpatia das suas gentes e a paisagem que a
rodeia. Não se espere encontrar aqui, porta sim porta sim como tantas vezes
sucede nestas aldeias turísticas, as lojinhas de “souvenirs” apinhadas de
“T-Shirts”, canecas e “imanes” para pendurar nos frigoríficos. Não que não
existam algumas, mas são mais discretas…
PS:
As informações que
vos dou relativas à origem dos murais foram retiradas deste pequeno livro que
vos mostro, “Les Murales de Orgosolo”, de autor desconhecido, que comprei na
aldeia.
TEXTO E FOTOGRAFIAS DE LUÍS MIGUEL MIRA