Por Outubro aparecia nas livrarias um novo livro de António Lobo Antunes.
Como por aqui fui escrevendo, há muito que deixei de ler romances seus, ele que tanto me
entusiasmou. As últimas palavras que dele gostava de ler, encontram-se nas
crónicas que publicava em jornais e revistas, depois reunidas em livro. Mas já
há algum tempo que nada disto acontecia.
Soube agora que António
Lobo Antunes, por a demência o ter atingido, não mais escreverá.
Em 2016 publicou Para aquela que está
sentada no escuro à minha espera.
José Cardoso Pires, grande amigo de Lobo
Antunes, escreveu, Janeiro de 1997, no seu De Profundis, Valsa Lenta:
«Como despedida, a
festa anunciada parece-me uma vinheta mas, se me é permitido, acrescento-lhe um
fio de música.»
Conheci o escritor António Lobo Antunes
através de uma entrevista que o jornalista Carlos Miranda publicou no jornal A
Bola, 1980.
Comprei então Memória de Elefante,
publicado pela Vega, e largamente, durante anos e anos, fui um entusiasta
leitor.
«São cinco da manhã e juro que não sinto a tua falta.
A Dóri está lá dentro a dormir de barriga para cima, de braços abertos
crucificados no lençol, e a dentadura postiça, descolada do céu da boca, avança
e recua ao ritmo da respiração num ruído húmido de ventosa. Bebemos ambos a
aguardente da cozinha pelo púcaro de folha, sentados nus na cama que o gás de
guerra tornou inabitável carbonizando até as folhas estampadas das fronhas,
escutei-lhe as confidências prolixas, enxuguei-lhe o choro confuso que me
tatuou o cotovelo de um arbusto de rímel, puxei-lhe o cobertor até ao pescoço à
laia de um sudário piedoso sobre um corpo desfeito, e vim para a varanda
arrancar os dejectos endurecidos dos pássaros. Está frio, as casas e as árvores
nascem lentamente do escuro, o mar é uma toalha cada vez mais clara e
perceptível, mas não penso em ti. Palavra de honra que não penso em ti.
Sinto-me bem, alegre, livre, contente, oiço o último comboio lá em baixo,
adivinho as gaivotas que acordam, respiro a paz da cidade ao longe, desdobro-me
num sorriso feliz e apetece-me cantar. Se eu tivesse telefone e me telefonasses
agora deverias encostar cuidadosamente o auscultador à orelha numa expectativa
de búzio: através das espiras de baquelite, vindo de quilómetros de distância,
desta varanda de betão suspensa sobre o fim da noite, terias, juntamente com o
eco do meu silêncio, o vitorioso eco do meu silêncio, o piano amortecido das
ondas. Amanhã recomeçarei a vida pelo princípio, serei o adulto sério e
responsável que a minha mãe deseja e a minha família aguarda, chegarei a tempo
à enfermaria, pontual e grave, pentearei o cabelo para tranquilizar os
pacientes, mondarei o meu vocabulário de obscenidades pontiagudas. Talvez
mesmo, meu amor, que compre uma tapeçaria de tigres como a do Senhor Ferreira:
podes achar idiota mas preciso de qualquer coisa que me ajude a existir.»
2 comentários:
Há muitos muitos, anos li dois livros que me entusiasmaram, este (Memória de Elefante, e Conhecimento do Inferno).
Tornei-me um leitor fiel do ALA, julguei eu, só que depois destes dois fui absolutamente incapaz de ler mais algum, não consegui, incapaz é o termo correcto.
Todavia continuei a ler AS CRÓNICAS (os livros de crónicas) com imenso prazer.
Leio agora com tristeza que a demência se abateu sobre ele. Apesar da minha incapacidade para o continuar a ler julgo que é uma grande perda para a literatura.
Com António Lobo Antunes transporte esta tristeza: a de, a partir do seu livro «As Naus» não ter, encontrado capacidade para ler os seus restantes romances. Incapacidade minha?
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