Os Grão-Capitães
Jorge de Sena
Edições 70, Lisboa Setembro 189
Meu pai era uma personagem mítica que eu quase só via à hora
de jantar, durante uns quinze dias, de três em três meses. A sua chegada era
prenunciada por um cheiro a encerados e a pó espanejado que se espalhava pela
casa toda, cujas portadas de janela se semicerravam como para conservar, em
estado de graça e de jazigo de família, aquele ambiente de silêncio e treva
premonitória. Não se sabia nunca ao certo essa chegada. Ele não escrevia senão
de raro em raro, e minha mãe, para calcular a demora da viagem, ia de vez em
quando, comigo pela mão, aos portais da Companhia de Navegação ver, no quadro
onde registavam o movimento dos barcos, em que porto das Áfricas o navio de meu
pai saíra ou entrara. Quando eu já sabia ler, mandava-me lá a mim, e ficava-se
meio oculta na esquina da rua creio que para, aos empregados que a conheciam,
não mostrara que não sabia mesmo onde o marido andava. Telefonar, e não tínhamos
telefone, não lhe ocorria; apresentar-se de cabeça erguida fosse onde fosse era
contra os seus princípios. E, muito provavelmente, nem os empregados se lembrariam
de achar estranho que ela, ainda que muitas cartas recebesse naquele tempo sem
aviões, fosse ver a rota do navio. Eu, a quem tantos compartimentos da casa
eram defesos, ficava durante e após as limpezas, e até ao dia da chegada,
encurralado de todo, e sem nada que sujasse ou me sujasse. E odiava aquela
expectativa, ao mesmo tempo que esperava curiosamente o que o meu pai traria:
caixotes de vinho da Madeira, cachos de bananas, frutas várias em cestas, às
vezes manipansos dos pretos, que me eram dados para eu brincar.
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