domingo, 11 de dezembro de 2016

QUOTIDIANOS


O tempo passeava com mansas lentidões quando chegou a guerra. Meu pai dizia que era confusão vinda de fora, trazida por aqueles que tinham perdido seus privilégios. No princípio, só escutávamos as vagas novidades, acontecidas no longe. Depois, os tiroteios foram chegando mais perto e o sangue foi enchendo nossos medos. A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder. Seu veneno circula agora em todos os rios da nossa alma. De dia já não saíamos, de noite não sonhávamos. O sonho é o olho da vida. Nós estávamos cegos. Aos poucos, eu sentia a nossa família quebrar-se como um poste lançado no chão. Onde eu sempre tinha encontrado meu refúgio, já não restava nada. Nós estávamos mais pobres que nunca.

Mia Couto em Terra Sonâmbula

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