sexta-feira, 17 de novembro de 2017

DIAS DE ACTIVIDADE TRÁGICA


A 23 de Dezembro de 1961, Mário-Henrique escreveu uma carta - «à noite, como sempre», desde S. Domingos, a Isabel a «doce Maruska, o amor querido», e em que chega a interorizarque qualquer coisa acontecerá, «voltar a estar vivo e a acreditar na manhã e nas estrelas».
A carta é longa, a felicidade fê-lo  «andar toda a manhã a berrar desafinadamente velhas canções russas, certamente com grande ofensa dos vizinhos».
Mas terá existido um telefonema de Isabel.
Por certo, uma qualquer ponta de arrependimento, e podemos ler em final de página:

Querida

O teu telefonema desta manhã tirou um pouco da alegria desta carta, mas ela já estava escrita e assim vai.

Já em Janeiro do novo ano, Mário volta, desesperadamente, à escrita, sem indicação de onde escreve:

Ouve, Isabel, tenho pensado, pensado muito nestes dias de actividade trágica (a palavra é verdadeira, caríssima) e visto que tenho que ser lógico e honesto comigo mesmo, verifiquei que não pode realizar-se connosco aquilo que eu, no meu desejo de ter direito a um pouco de felicidade, pensei que seria verdade. Se não vê: não podes, nunca poderás suportar um homem como eu. Se pudesses, já o tinhas decidido firmemente durante estes três ou quatro meses em que nos conhecemos. Isto é verdade e tu sabe-lo. Sabes isto, assim como sabes que a minha companheira terá de ter a coragem que teve a Dietlinde: abandonar tudo para seguir o homem que ama. Mas, minha cara, sê honesta contigo mesma, em ti não há amor suficiente para me seguir. Não é uma crítica, querida Maruska do sorriso bonito, é um facto que eu verifiquei com o meu imundo espírito dialéctico, Isabel, eu não partilho nada com ninguém; dou e quero ter. De outra maneira, não. Sou talvez aquilo a que se chama um lobo solitário e, para esses animais amargos e refilões, raramente aparece a loba que os quer seguir, Há que lutar contra toda a lcateia, menina bonita, tanto o lobo como a loba, e isso é duro. Quanto ao lobo, geralmente é animal já pelado e cheio de cicatrizes, mais dentada menos dentada, tanto faz. Mas a loba, essa terá uma vida de inferno – e amor violento – que não é fácil de aceitar. E aqui tens tu mais uma história que bem poderia ser do Jack London.

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos

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