Sábado, 25 de Novembro
de 1967.
Estava em Tavira
a cumprir o serviço militar obrigatório.
Tinha vindo a
Lisboa passar o fim-de-semana e aproveitar para tirar a medida ao 2º fato do
casamento, que ocorreria em Dezembro.
A chuva
fustigava Lisboa.
Perto das sete
da tarde estávamos, eu e a Aida, no alfaiate, num 3º andar da Rua do
Fanqueiros, a fazer a prova do fato.
Um enorme trovão
e ficámos às escuras.
As costureiras
trouxeram um candeeiro a petróleo, algumas velas.
Muito à média
luz, conseguiu o alfaiate fazer a prova possível.
Como não houve
oportunidade para outras provas, o facto é que o fato nunca me assentou bem.
Também nunca foi
coisa a que desse qualquer tipo de importância.
Saímos do
alfaiate sem que a luz tivesse sido reposta.
A chuva desabava
como um dilúvio.
Aguardámos bem
perto de uma hora e acabámos por nos fazer ao caminho.
A forte ventania
destruíra os chapéus-de-chuva, as gabardines estavam ensopadas em água, não
protegiam coisa alguma.
Não havia
transportes.
A Avenida
Almirante Reis era um rio, o Martim Moniz era um lago, onde carros, tudo o que
imaginar se possa, flutuavam.
Abandonávamos os
vãos de escada quando a chuva aliviava um pouco, se é que num temporal como
aquele se pode falar em momentos de alívio.
Um pânico
indescritível apossara-se das pessoas.
Sem telefones
não era possível avisar as famílias.
Ninguém sabia de
ninguém.
Da Rua dos
Fanqueiros até ao alto da Penha de França demorámos mais de três horas.
A rádio e a
televisão apenas transmitiam o que a censura impunha, ou seja: nada!
Durante toda a
noite e madrugada choveu.
Só no domingo
começámos a ter uma ideia, pálida ideia, da tragédia que se abatera sobre
Lisboa e arredores.
Os jornais,
rigorosamente vigiados, davam notícia: 250 mortos.
«Lamento profundamente a tragédia e, na medida do
possível, tudo farei para minorar o sofrimento das pessoas que necessitarem dos
nossos socorros», palavras do
ministro do Interior Santos Júnior.
Anunciava-se que
o presidente Américo Tomás, oportunamente, visitaria alguns dos locais
atingidos pela intempérie.
Joaquim Letria,
jornalista do Diário de Lisboa, trinta anos depois, resumiu para
o Diário de Notícias:
«A Censura cortava sobretudo o número de mortos e o
que se referia às causas da tragédia e à incúria governamental e camarária que
estava por trás da catástrofe.
No DL fomos, o Pedro
Alvim e eu, destacados para cobrir os acontecimentos. Estivemos noites
sem ir à cama e tínhamos de fazer a nossa própria contabilidade dos corpos
(contávamo-los um a um, o que oAlvim imortalizou
numa belíssima crónica intitulada «Os
Mortos e os Fósforos») e todos os dias tentávamos actualizar esse
número, que a Censura nunca deixava passar. Chegávamos às centenas, quando os
números dos censores não ultrapassavam as dezenas.»
Depoimento do
jornalista João Paulo Guerra:
«Eu das cheias de 67 lembro-me de um telex da Censura,
para a redacção do Rádio Clube Português, pelas 3 da manhã, a dizer: «A partir
de agora não morreu mais ninguém».
No seu livro, Os
Segredos da Censura, César Príncipe, reproduz estas determinações dos
coronéis:
César Príncipe dá-nos ainda uma uma outra, miserável, determinação dos coronéis da Censura, datada de 30 de Dezembro de 1967.
Referia o baile de passagem de ano, realizado no Palácio dos Valenças em Sintra:
«Não dizer que a receita se destina às vítimas das inundações.»
No dia 4 de
Dezembro o governo contabilizava 458 mortos.
O número
definitivo de mortos nunca veio a ser conhecido, mas calcula-se que tenham
morrido para cima de 700 pessoas.
A censura
retalhou tudo quanto assinalava ausência de infra-estruras, bem como a falta de
apoio às populações.
Escreveu o
jornalista António Valdemar:
«Terrível e insólito paradoxo: um regime político que
tinha na Igreja católica um dos seus mais poderosos sustentáculos, remetia para
Deus as culpas e responsabilidades da catástrofe.»
O Diário
de Notícias, num dos seus editoriais:
«Ocorre-nos perguntar se não estará alguma coisa
profundamente errada com o sistema de colectores da capital.
Sim, é verdade, os colectores da cidade não estavam
preparados para o anormal caudal de água que dos céus desabou, mas outros
motivos existiam, ainda existem.
Por exemplo, o arquitecto Ribeiro Telles, sempre se
bateu arduamente pelo desenvolvimento entre o ordenamento do território e a
terra, sistematicamente chamou a atenção para o perigo de canalizar ribeiras ou
secar o subsolo.
Nunca foi ouvido.»
Em Quintas, uma
aldeola poucos quilómetros a norte de Vila Franca de Xira, morreram mais de cem
pessoas.
O fatídico 25 de
Novembro de 1967, pôs a nu a miséria em que a população da Grande Lisboa vivia.
A maioria das
vítimas habitava barracas construídas nos cursos de água, em escarpas, onde
calhava.
Estão passados
50 anos.
Há
acontecimentos que nunca esquecem!
Há lições que
nunca devíamos esquecer.
Acabamos por
esquecer...
Volta e meia a
desgraça das cheias, das inundações bate-nos, de novo. à porta.
Ouvem-se
lamentos, as promessas de sempre.
Até um outro dia
em que tudo volte a acontecer!
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