O aborrecimento é um mal comum nas ilhas. Uma possível solução é sentar-se a ver como os caranguejos entram e saem das suas tocas.
Claudio Hochman em Ilhas
O aborrecimento é um mal comum nas ilhas. Uma possível solução é sentar-se a ver como os caranguejos entram e saem das suas tocas.
Claudio Hochman em Ilhas
O Caso da Rapariga Sem Rumo
Erle Stanley Gardner
Tradução: Irene
Fernanda
Capa: Lima de Freitas
Colecção Vampiro nº
206
Livros do Brasil, Lisboa s/d
- E o que irá acontecer a Milfred Crest? – pergunto Della Street-
- Milfred Crest vai ter um bom emprego na Baylor Manufacturing
& Development Company e Mr. Harriman
providenciará para que ela seja promovida tão depressa quanto a sua competência
o justifique.
Della Street olhou para ele com olhos húmidos.
- Curve-se um bocadinho, por favor – pediu ela – para eu o poder beijar
na testa.
Mason cravou nela um olhar cheio de ternura.
- Tenho a impressão, Della, de que não sou capaz de me curvar tanto.
Importa-se que seja um pouco mais abaixo?
- Absolutamente nada.
Eu não me importo nada de andar a saltitar de um lado para o outro, mas parece-me ser mais interessante para quem tem a paciência de me ler que os textos tenham alguma sequência lógica entre si…
Voltemos a Hemingway, portanto…
E passemos a Cuba.
Quando vos falei da casa de Key West disse-vos que, após quatro viagens e um total de oito meses passados em Espanha durante o período da Guerra Civil, Hemingway regressara aos Estados Unidos em inícios de 1939, tendo-se instalado, seguidamente, em Cuba, onde prosseguiu a escrita de “Por Quem os Sinos Dobram”.
A jornalista Martha Gellhorn, com quem Hemingway iniciara uma relação afetiva em Espanha, juntar-se-ia a ele uns tempos mais tarde, e casaram-se em Novembro de 1940, no Wyoming, após ter sido decretado o divórcio de Pauline Pfeiffer.
Em Cuba Hemingway viveu no Hotel Ambos Mundos, na Habana vieja , que aqui vos mostro.
Neste hotel
aconteceu-me uma coisa perfeitamente inesperada.
Estava eu no bar do piso térreo, dou uma olhadela para um jogo de futebol que passava na televisão e começo a ver jogadores conhecidos. Era um jogo do Sporting em casa do CSKA para uma pré-eliminatória da Liga dos Campeões, coisa impensável de se ver em Cuba…!
Como não fora ao Ambos Mundos para ver jogos do Sporting, subi para tomar uma cerveja no terraço e ver a bela vista sobre Havana que de lá se vislumbra. Quando subi ganhava o Sporting 1-0; quando voltei a descer perdia 2-1… Parece que foi roubado e, desta vez, a sério…
Mas adiante, que não vim aqui falar em desgraças...
Hemingway gostava de se alojar neste hotel porque estava próximo do porto onde o seu barco, “Pilar”, se encontrava ancorado, e a poucas centenas de metros, também, dos bares que mais frequentava em Havana, sobretudo o Floridita, que ficava no outro extremo da mesma rua, porque o Bodeguita del Medio ainda não existia na altura.
Mas Martha Gellhorn não se sentia bem a viver em quartos de hotel e não descansou enquanto não encontrou uma residência para o casal.
Foi ela quem descobriu a Finca Vigia, num lugarejo chamado San Francisco de Paula, a 24 km de Havana, uma grande casa construída em 1886 num terreno vastíssimo.
A primeira vez que ouvi falar desta Finca foi em 1974 ou 75, num documentário integrado num ciclo de Cinema Cubano que o Lauro António organizou no Apolo 70. O programa do ciclo ainda deve andar por aí, mas vá lá saber-se onde...
Inicialmente alugada, a Finca seria, mais tarde, comprada por Hemingway por 12.500 dólares, após ter sido consumado o seu divórcio.
Mas Gellhorn não iria passar muito tempo em Cuba.
Primeiro porque, depois de uma primeira experiência bem sucedida em Espanha, a sua carreira de correspondente de guerra ganhou asas e as ausências em trabalho eram cada vez mais frequentes, levando Hemingway a queixar-se de que não precisava de uma mulher nas páginas dos jornais de grande tiragem, mas sim na sua cama…
Por vezes Hemingway acompanhava a mulher nas suas viagens de trabalho, como numa célebre viagem à China em 1941, em pleno conflito sino-japonês. Mas na maior parte das vezes ela ia sozinha à sua vida.
Depois porque a Martha não agradava muito o tipo de vida que Hemingway levava em Cuba e não perdia uma boa oportunidade para arejar.
Na primeira das cartas já escritas na Finca que constam desta coletânea de “cartas escolhidas” que vos mostro, datada de 11 de Fevereiro de 1940, Ernest escreve ao seu célebre editor Maxwell Perkins:
“We won again at the pelota last night and stayed up till three a.m. So today will have to take Martha to the movies as a present for being drunk Saturday night, I guess. Started out on absinthe, drank a bottle of good red wine with dinner, shifted to vodka in town before the pelota game and then battened it down with whiskys and soda until 3 a.m.”
E, finalmente, porque, com todos estes problemas, o casal também não iria ficar junto muito tempo
Na verdade, eram duas personalidades muito fortes, que frequentemente batiam de frente.
Às vezes por ninharias, como quando Martha terá mandado castrar todos os gatos selvagens que aparecessem na quinta e Hemingway interpretou isso como uma ofensa simbólica em relação a si...
Martha era segura de si e afirmaria mais tarde, que não queria ficar para a posteridade como uma simples nota de rodapé na biografia de Hemingway…
Este, por seu lado, parecia sentir cada vez mais ciúmes do sucesso jornalístico da sua mulher.
E o copo transbordou quando, alegadamente, Hemingway conseguiu desviar para si uma credencial da “Collier’s” para acompanhar o desenrolar da II Grande Guerra em França, a qual, em princípio, estaria destinada à sua mulher.
Gellhorn não se conformou e conseguiu partir para a Europa, disfarçada no interior de um navio que transportava enfermeiras de guerra e várias toneladas de explosivos.
Finalmente, não deixaram Hemingway desembarcar porque, como escritor, foi considerado um ativo demasiado importante para correr riscos de morte, e Martha pôde orgulhar-se de ter sido a única correspondente a desembarcar na Normandia e a cobrir esse histórico evento.
Hemingway instalou-se em Londres, onde reencontrou Mary Welsh, uma jornalista da revista “Time” que já havia conhecido em Paris e com quem iniciou uma relação.
E foi em Londres que Gellhorn o informou que estaria tudo acabado entre eles. O divórcio foi decretado em finais de 1945 e em Março de 1946 Hamingway casar-se-ia, em Cuba, com Welsh.
Scott Fitzgerald parecia ter razão… Uma mulher para cada livro…
Mas Mary Welsh seria mulher para muitos livros e foi a quarta e última mulher de Ernest.
Gellhorn não mais voltaria à Fica Vigia e iria voar sozinha, prosseguindo uma carreira de jornalista que a iria transformar num dos mais célebres correspondente de guerra de todos os tempos.
Quanto a Hemingway, iria passar uma parte do seu tempo em Cuba até abandonar a ilha, em Julho de 1960.
Mas esta presença estava longe de ser constante porque, para além das permanentes viagens que fazia pelo Mundo, a determinada altura Hemingway criou o hábito de passar o Verão nas montanhas de SunValley, no Idaho, e os meses de Inverno em Cuba.
Literariamente e com
exceção de “O Velho e o Mar”, publicado em 1952, Cuba não iria ser muito
produtiva para Hemingway.
Antes havia publicado “Na Outra Margem Entre as Árvores”, obra de que gostava muito mas que fora mal recebida pela crítica e pelo público.
Mas vingara-se, porque “O Velho e o Mar” deu-lhe um Pulitzer e o Nobel chegaria, dois anos depois.
Em contrapartida, aventura não lhe terá faltado.
Por esta altura as grandes companhias de Hemingway, em Cuba, não eram intelectuais, mas boémios, desportistas, sedutores e jogadores. Para além da gente do mar, de cuja presença sempre necessitou.
Com o seu barco, “Pilar”, não se limitava às pescarias e patrulhava, de noite, as águas do Golfo, à procura de submarinos alemães e parece que também chegou a criar uma rede privada de investigação, chamada “Crook Factory”, que espiava simpatizantes nazis.
Tanta generosidade junta alertou Edgar Hoover, que mandou que lhe fosse aberto um “dossier” por suspeita de ligações soviéticas.
Ou seja, enquanto espiava em favor da América, era espiado por ela… Típico de Mr. Hoover!
Mais tarde, já na segunda metade dos anos 50, também foi espiado pelo FBI por suspeita de colaboração com grupos de rebeldes anti-Batista, através do fornecimento de armas e de dinheiro.
Os últimos anos de Hemingway foram penosos, com sequelas de dois graves acidentes de aviação ocorridos em África um após o outro, várias doenças, depressões e sucessivos internamentos hospitalares com terapia de eletrochoques .
Como é sabido, não terá aguentado ver-se muito mais tempo nesse estado e suicidou-se com um tiro na garganta em 2 de Julho de 1961, na sua quinta de Idaho, com apenas 61 anos de idade.
Durante alguns anos a família esconderia o suicídio, afirmando que se tratara de um acidente, mas mais tarde assumiu a verdade.
Martha Gellhorn, que passaria os seus últimos anos de vida praticamente cega e a padecer de um cancro nos ovários, suicidar-se-ia, também, em 15 de Fevereiro de 1998, em Londres, com 89 anos
Mary Welsh não se suicidou e viveu até aos 78 anos.
Hoje a Finca Vigia é um Museu Nacional, propriedade do Estado Cubano.
Mas a história desta passagem de propriedade para o Estado também é interessante.
Cuba diz que se tratou de uma doação de Hemingway, mas parece não ter sido bem assim...
Hemingway nutria simpatia por Fidel Castro e parece que a simpatia era mútua.
Mas, não obstante existirem várias fotografias de Hemingway em companhia de Fidel, parece que só se encontraram uma única vez e por pouco tempo, em Maio de 1960, por ocasião de um torneio de pesca ganho pelo Comandante, que dava provas de ser, também, um excelente pescador. Todas as fotografias existentes terão sido tiradas nessa ocasião.
Apesar dessa aparente boa relação, à cautela e temendo que os bens de cidadãos estrangeiros residentes em Cuba viessem a ser expropriados pelo novo Governo, Hemingway depositou num cofre de um banco os seus bens mais valiosos, que incluíam, para além de alguns objetos e bens pessoais, os manuscritos dos livros em que estava a trabalhar (“Paris é Uma Festa”, “Ilhas na Corrente” e “O Jardim de Éden”, que seriam todos editados postumamente) e os seus quadros de maior valor e/ou estima pessoal.
Na última das cartas escritas em Cuba que constam da coletânea que vos mostrei, Hemingway escreveu a Charles Scribner Jr a 6 de Julho de 1960, menos de três semanas antes de partir de vez:
“We had planned to be leaving here in a couple of weeks. Very hot now and the trades are not blowing and it rains heavely each afternoon. The big fish have not come yet but are over-due and I would like to pull on a couple of big ones before I leave.”
Não sei se os chegou a pescar, ou não, já que deixaria Cuba a 25 de Julho de 1960, para não mais voltar.
Após a falhada invasão da Baía dos Porcos, em Abril de 1961, os receios de Hemingway confirmar- -se-iam e os bens de cidadãos americanos foram de imediato confiscados, incluindo a Finca Vigia, todo o seu recheio e tudo o que se encontrava guardado em bancos.
O que mais tarde se passou terá sido uma mera operação diplomática, parece que sob a égide do próprio Presidente Kennedy, que transformou uma sempre desagradável expropriação em “doação”, mediante troca por tudo aquilo que havia sido depositado por Hemingway no referido banco.
Como poderão ver pelas fotografias que vos mostro, a Finca Vigia tem tudo o que é habitual ver-se nas casas de Hemingway: troféus de caça, posters de corridas de touros, fotografias, centenas de livros…
Os mais importantes quadros e peças de decoração terão saído para os Estados Unidos, como vos referi.
Tal como poderão ver, o “Pilar”, a amada embarcação que Hemingway possuía desde os tempos de Key West também lá foi colocado, no espaço adjacente à piscina.
A torre mais alta é o espaço onde Hemingway se recolhia para escrever e podem ver uma fotografia desse escritório.
E, por hoje, daqui já chega.
No próximo texto daremos um saltinho a Cojimar, que fica aqui tão perto…
PS:
Que saiba ou que me lembre, existem dois filmes relativamente recentes que abordam a vida de Hemingway em Cuba.
Um é “Hemingway & Gellhorn”, que se debruça sobre a vida do casal e cuja referência a Cuba é muito ligeira. Com Nicole Kidman no papel de Martha Gellhorn e Clive Owen no de Hemingway, o filme é uma muita cuidada produção da HBO e foi realizado em 2012 por Philip Kaufman. É uma obra bastante interessante e, tanto quanto consigo perceber, muito fiel aos factos retratados.
O outro, “Papa – Hemingway in Cuba”, que Bob Yari realizou em 2015, com Adrian Sparks no papel de um desgastado e alcoolizado Hemingway, é mais banal e centra-se nos anos de 1957 e 1958, em que ele terá colaborado com a guerrilha e sido espiado pelo FBI. O único verdadeiro interesse que me parece ter é ter sido o primeiro filme de Hollywood autorizado a ser rodado em Cuba desde 1959.
Como não sou historiador de Literatura, para escrever acerca de Hemingway andei à pesca, tal como ele, puxando uma linha aqui e outra acolá.
Para além da “Net”, estes dois filmes proporcionaram-me informação útil, a qual seria confirmada num muito recente documentário transmitido pela SIC e integrado na série “Grandes Romances do Séc. XX”.
Texto e fotografias de Luiís Miguel Mira
São de ferro. Ou de aço?
Diz-se que fazem à entrada
um pequeno orifício,
seguido de uma grande
devastação de carnes
sangrentas. Por isso matam.
Li tudo sobre a morte.
Escrevi sobre a minha
e depois embebedei-me.
A bala vem pelo ar
(ruído onomatopaico) e
crava-se, cava, ceva-se
nessas carnes. Era a minha.
Tive uma bala marcada:
à última hora telefonei
a desistir. ‘da-se!
Pior para o Soares que entra
nestes versos já morto.
São de ferro. A tua era,
ó Soares, ou de aço,
e «agora choro contigo»
ausente uma vila
branca do Alentejo: tu.
Diz-se que fazem assim
um pequeníssimo estúpido
orifício (não quis ver)
como um botão mas
destroem tudo, devastam
tecidos, vísceras nobres,
e então trazem até nós
a morte sanguinolenta.
Se ainda as fabricam
como no meu tempo, creio
que matam num, ah pois,
infinitésimo de segundo.
É brutal. Eu ouvi-as:
perde-se a tesão por um século.
Fernando Assis
Pacheco em A Musa Irregular
Como sabem, W.A. é músico nos seus tempos livres e toca, principalmente, clarinete.
No que respeita a atuações públicas, tudo começou quando se juntou a um grupo de amigos às segundas-feiras à noite, no Michael's Pub, de Nova Iorque. Desde 1996 a banda passou a tocar, regularmente, no Carlyle Hotel, também em Manhattan.
Entretanto a banda ganhou o nome de "New Orleans Jazz Band" e, como ele refere, deu várias vezes a volta ao Mundo, tendo passado em duas ocasiões pelo CCB de Lisboa, a última das quais muito recentemente, a 4 de Julho de 2017.
Não assisti a nenhum desses concertos. Os preços pareceram-me exorbitantes para uma banda de amadores...
Em 1996 a célebre realizadora americana Barbara Kopple acompanhou a banda numa digressão pela Europa, daí resultando o documentário "Wild Man Blues", lançado no ano seguinte.
Esta "tirada" é, pois, acerca de W.A. enquanto músico.
"O meu amigo
Jerry comprou um gravador e apresentou-mo com orgulho.
"Que música é
essa?", perguntei
"É um concerto
de jazz que gravei", disse ele, da "rádio Ted Husing's
Bandstand".
"É
excelente", disse, atirando para o lado os meus livros da escola, na
direção do caixote do lixo.
"Um concerto em
França".
"Quem é
esse?"
"Sidney
Bechet."
"Quem é
esse?"
"Um saxofonista
soprano de Nova Orleães."
Foi a primeira vez
que ouvi jazz de Nova Orleães. Porque me afetou tão profundamente nunca
saberei. Ali estava eu, um judeu de Brooklyn, que nunca tinha saído de Nova
Iorque, com o tipo de gosto cosmopolita, um grande apreço por Gershwin, Porter,
Kern, compositores populares muito sofisticados, e ali estavam estes
afro-americanos do sul profundo, que nada tinham em comum comigo e, no entanto,
rapidamente se tornaram uma obsessão; em breve eu era aspirante a humorista,
aspirante a mágico, aspirante a jogador de beisebol e aspirante a músico de
jazz afro-americano. Comprei um saxofone soprano, aprendi a tocá-lo; comprei um
clarinete e aprendi a tocá-lo. Comprei uma vitrola. Isso fui capaz de tocar sem
lições"
(pág. 59)
"Ouvíamos todo o
tipo de jazz, mas os nossos preferidos eram os discos antigos de Nova Orleães.
Bunk Johnson, Jelly Roll Morton, Louis Armstrong e, claro, Sidney Bechet, que
eu adorava e queria imitar enquanto tocava (e se isto não o fizer rir, nada
fará). Sentava-me no meu quarto sozinho, a tocar, enquanto ouvia os discos de
Bechet e, mais tarde, de George Lewis. Este foi outro ídolo meu; com ele e John
Dodds, mais um génio do clarinete, sentia que me tinha, por fim, encontrado. O
prazer era tão intenso que decidi dedicar a minha vida ao jazz. Mal sabia eu
que Bechet, Armstrong, George Lewis, Johnny Dodds, Jelly Roll Morton e Jimmie
Noone eram génios musicais. o idioma deles era primitivo, mas, nos parâmetros
do jazz de Nova Orleães, tinham dentro deles algo verdadeiramente mágico, que
jorrava a cada nota que tocavam. Eu, bronco ingénuo que era, não compreendia
que não tinha essa genialidade, que estava destinado, apesar de todos o meu
entusiasmo e amor pela música, a não ser mais do que uma nulidade musical, que
seria escutada e tolerada com base numa carreira cinematográfica, e não por
algo que valesse alguma coisa no que ao jazz diz respeito."
(pág. 59 e 60)
"Mas praticava,
e ainda pratico. Toco todos os dias e com tal dedicação que, para ter a certeza
de que não falho um dia, já toquei em praias geladas, em igrejas enquanto a
minha equipa de filmagens se instalava, em quartos de hotel depois do trabalho,
enfiando-me na cama e tapando-me com as cobertas para não acordar os outros
hóspedes. Contudo, por muito que ouça música, que leia as histórias
estimulantes das vidas dos músicos e que sopre, sopre, sopre, com diferentes
bocais e palhetas, sempre em busca daquela combinação que me irá fazer soar
melhor, continuo uma nulidade. Continuo a ser um jogador de ténis de fim de
semana no meio de Federer e Nadal. Lamento dizê-lo, não o tenho em mim: o
ouvido, o tom, o ritmo, o sentimento. No entanto, já toquei em público em
clubes e salas de concerto, em casas de ópera por toda a Europa, em auditórios
cheios nos Estados Unidos. Já toquei em paradas de Nova Orleães e bares da
cidade, no Jazz Heritage Festival e no Preservation Hall, tudo porque a minha
carreira cinematográfica o permite. Há vários anos, Dotson Rader, um homem
espirituoso, perguntou-me durante um jantar: "Não tens vergonha?".
Entre o amor pela
música e os meus limites enquanto músico, se quero tocar não me posso dar ao
luxo de ter vergonha."
(pág. 60)
Woody Allen em A Propósito de Nada
Colaboração de Luís Miguel Mira
Vocábulos de sílica, aspereza,
Chuva nas dunas, tojos, animais
Caçados entre névoas matinais,
A beleza que têm se é beleza.
O trabalho da plaina portuguesa,
As ondas de madeira artesanais
Deixando o seu fulgor nos areais,
A solidão coalhada sobre a mesa.
As sílabas de cedro, de papel,
A espuma vegetal, o selo de água,
Caindo-me nas mãos desde o início.
O abat-jour, o seu luar fiel,
Insinuando sem amor nem mágoa
A noite que cercou o meu ofício.
Carlos de Oliveira em
Sobre o Lado Esquerdo
Esta nova Tirada é sobre Woddy Allen e a condução.
Também já vimos coisas deste estilo nos filmes dele...
Não vos quero massacrar com as "tiradas" de W.A. mas, enquanto estas já estão preparadas, tenho outros textos no forno que ainda vão precisar de um pouco mais de paciência para lhe pegar...
"... por essa altura tinha carro. Adquirira um descapotável Plymouth de 1951 por seiscentos dólares. Tinha alimentado fantasias gloriosas de como um carro iria mudar a minha vida. Libertar-me-ia; poderia conduzir sobre a ponte de Manhattan sempre que quisesse, escapar para Long Beach para visitar longos poisos nostálgicos, ir até Connecticut numa manhã de primavera para comungar com a natureza. Não faço ideia em que raio estaria eu a pensar; odiava a natureza e, mais do que a natureza, odiava ser dono de um carro."
(pág. 97)
"...um carro nas minhas mãos era como dar uma ICBM a uma criança de três anos. Conduzia demasiado depressa. Guinava e dobrava esquinas onde estas não existiam. Não conseguia estacionar de marcha atrás. Fazia peões descontrolados. Não tinha paciência para o trânsito e queria deixar o Plymouth e abandoná-lo para sempre no meio de uma rua engarrafada. Conduzia infidavelmente , incapaz de encontrar um sítio para estacionar e, depois, não era capaz de enfiar lá o carro. Parti muitos faróis traseiros e dianteiros de veículos estacionados, a tentar enfiar-me entre eles, depois arrancava e acelerava para longe, em pânico, abandonando a cena do crime. Estava continuamente a perder-me. Não tinha qualquer sentido de orientação. "
(pág. 99)
"Sim, o carro era, como muitas mães de raparigas temiam, um quarto
de hotel sobre rodas; mas sempre que começava a trocar beijos, aparecia a luz
de uma lanterna e um qualquer polícia mandava-me seguir viagem"
(pág 99)
"No entanto, conduzia porque toda a gente que conhecia parecia ser
capaz de gerir um carro, assim, porque não haveria eu de conseguir? Mas nunca
consegui e haveria de desistir pouco depois. Voltei a tentar conduzir mais uma
ou duas vezes, anos mais tarde, com iguais resultados e, por fim, desisti para
sempre.
Mal vendi o Plymouth foi como se me tivessem tirado um tumor."
(pág 99 e 100)
Woody Allen em A Propósito de Nada
Colaboração de Luís Miguel Mira
Legenda: Fotograma do
filme Annie Hall
Vivo como se não estivesse aqui
roupa leve como na vida.
E vou da primeira à última batida
na respiração de um pulmão doido.
Lê assim
podia arder a uma pouca distância de ti
nessa praceta que é um poema teu
e as coisas voltariam a mim, meras,
como o ser transportada pelos dias
mas cairei por aqui.
Meu amor
Porta no trinco e nada nas mãos.
Há muito que é tudo o que resta.
Raquel Nobre Guedes
em Os Cem Melhores Poemas Portugueses
Eduardo Prado Coelho em Tudo o Que Não Escrevi, Volume I
O QU’É QUE VAI NO
PIOLHO?
Jorge Silva Melo no seu Século Passado:
Mas vê-se sempre O Vale era Verde, de maneira diferente porque de todas as vezes se chora de maneira diferente. Já ao ver este filme, chorei infâncias perdidas, quando mais para aí me dá o sentimento; ou a morte dos pais; ou a miséria da mina, ventre infernal do capitalismo; ou a honra dos trabalhadores; ou a coragem das mães; ou as refeições em silêncio; ou o casamento da irmã; ou as longas doenças da infância com os primeiros romances lidos na cama; ou a chegada da Primavera, ou o cheiro a sabão azul e branco, o acreditar que “um homem não chora”, o acreditar no silêncio dos homens e na determinação das mulheres, na honra, no valor do trabalho, no fluir inexorável da vida, na impossibilidade do regresso, na consciência da luta. E também nos aventais brancos, nas grandes almofadas, no banho na celha, na água a ferver...
Digo eu, agora: também a lindíssima Maureen O’Hara, nos seus 21 anos de cabelos ruivos, no preto e branco do filme, a atingirem um brilho esplendoroso.
Um filme em que não há nada, mas mesmo nada, que não
esteja no lugar certo.
A perfeição é possível?
Como isto não é um exercício de crítica ao filme, antes uma relembrança do quanto é belo o cinema, deixo o discurso de Mr. Gruffydd, o padre que vai ser julgado pelo conselho dos diáconos, gente que, ao longo dos tempos, a Igreja sempre guardou em si, como defensores de uma moral obsoleta, hipócrita, tão característica dos beatos e beatas de sacristia.
O meu avô paterno, anticlerical militante, adorava este discurso, o discurso de Mr. Gruffydd, interpretado por Walter Pidgeon:
Esta é a última vez que tomo a palavra nesta capela.
Vou deixar o vale com mágoa, por aqueles que me ajudaram aqui, e que deixaram
que eu os ajudasse. Mas... para os restantes, aqueles que provaram que
desperdicei o meu tempo entre vós, só tenho uma coisa a dizer. Não houve um único
entre vós que tenha tido a coragem de vir ter comigo e me acusar de alguma má
acção. Mesmo assim, seja como fôr, se houve algum pecado, sou eu quem deve ser
considerado pecador. Há alguém que queira erguer a voz, aqui e agora, para
me acusar? Não. Também são cobardes para além de hipócritas. Mas eu não vos
culpo. A culpa é tanto minha como vossa. As línguas ociosas e a pobreza de
espirito que têm demonstrado, significam que não consegui transmitir à maioria
a lição que me foi dada para ensinar. Quando era jovem pensava
que podia conquistar o mundo com a verdade. Pensava vir a
dirigir um exército maior do que Alexandre alguma vez sonhou. Não para
conquistar nações mas para libertar a espécie humana.
Com a verdade. Com o som dourado da palavra. Mas só uns quantos escutaram. Só uns poucos de vocês compreenderam. Os restantes vestiram-se de preto e sentaram-se na capela. Porque é que cá vêm? Porque vestem de preto a vossa hipocrisia e a exibem perante Deus aos domingos? Por amor? Não. Já demonstraram que têm o coração demasiado definhado para receberem o amor do Vosso Pai Divino. Eu sei porque vieram. Vi-o nas vossas caras todos os domingos enquanto estavam aqui de pé perante mim. Foi o medo que vos trouxe cá. Um medo horrível e supersticioso. Medo da retribuição divina. Um relâmpago e o fogo dos céus, a vingança do Senhor e a justiça de Deus. Mas esqueceram-se do amor de Jesus. Ignoraram o seu sacrifício. A morte. O medo. As chamas, o horror e as roupas negras. Reúnam então o vosso conselho. Mas saibam que se estão a fazer isto em nome de Deus e na casa de Deus, estão a cometer uma blasfémia contra Ele e a sua palavra.
A mesma voz off que nos introduz o filme, encerra-o:
Homens como o meu pai não podem morrer. Permanecem
ainda hoje, comigo, tão reais na memória com o eram na carne, amando e amados.
Como era verde o meu vale.
Estive a rever o filme.
Quando chegou o The End, se vos disser que os
meus olhos estavam secos, não acreditem.
Texto publicado em 19 de Outubro de 2012.
A lua e sol viviam juntos, e davam-se o melhor possível, até que o sol
surpreendeu a lua beijando com toda a paixão a estrela da manhã.
O sol bateu-lhe. Segundo contam os mapuches, as cicatrizes do castigo
continuam bem à vista no corpo da lua; e das suas lágrimas de prata nasceu a
arte indígena da ourivesaria.
E nunca mais viveram juntos. Quando o sol surge, a lua vai-se embora.
Quando a lua aprece, o sol esconde-se.
Onde se lê Deus deve ler-se morte.
Onde se lê poesia deve ler-se nada.
Onde se lê literatura deve ler-se o quê?
Onde se lê eu deve ler-se morte.
Onde se lê amor deve ler-se Inês.
Onde se lê gato deve ler-se Barnabé.
Onde se lê amizade deve ler-se amizade.
Onde se lê taberna deve ler-se salvação.
Onde se lê taberna deve ler-se perdição.
Onde se lê mundo deve ler-se tirem-me daqui.
Onde se lê Manuel de Freitas deve ser
com certeza um sítio muito triste.
Sim, eu sei que são
muito extensas, mas pareceu-me mais coerente juntar tudo o que tem a ver com o
mesmo tema, em vez de vos enviar aos bochechos. E ainda deixei muita coisa de
fora...
Embora 18 anos mais
novo do que ele, eu ainda fui a tempo de sentir um pouco da magia que ele aqui
evoca, embora não tivesse tido a sorte de ter uma prima mais velha que me
levasse todas as semanas ao cinema ver uma sessão dupla...
Nos finais dos anos
50, ou seja, aí pelos meus 6/7 anos, já havia televisão em Portugal, mas só a
preto e branco.
Nada que se
comparasse, portanto, com o espanto daquele ecrã gigante, com a sedução do
"Technicolor" e da música e com todo aquele ritual pelo qual passávamos
(o "foyer", a subida das escadas, a condução ao nosso lugar, o
"Programa" para recordação, ...) até soarem as badaladas e o filme
começar. E ainda me lembro que a primeira vez que fui ao Cinema foi para ver
"A Bela Adormecida" no Monumental com a minha já falecida prima Lena,
e dei um valente bate-cu porque a malvada da cadeira fugiu debaixo do meu rabo
sem eu dar por isso...!
Eram as noites que
sonhávamos até a hora chegar, e as outras que levávamos a pensar quando é que
teríamos a sorte de lá voltar.
As minhas filhas já
nasceram com a televisão a cores, numa altura em que o Cinema começava a estar
banalizado nas televisões e já havia VHS para se ver em casa. E a ida ao
Cinema era um ritual quase semanal...
E os meus netos
então, nem se fala...
Quanto a W.A., se,
conhecendo-se a sua Obra, não se estranha muito alguns dos gostos e desgostos
manifestados, já se estranha - e muito...! - que o cinéfilo Allen não tenha
tido sequer a mínima "curiosidade cinéfila" para dedicar meia-dúzia
de horas da sua vida a ver algumas das obras-primas que se gaba de não ter
visto, tanto mais que as mesmas devem ter passado centenas de vezes nas
televisões americanas...
Mas se ele o
diz...
Deixo-vos, então, com este nostálgico relato de outros tempos...
"Eu via todos os filmes que Hollywood lançava.
Todas as grandes produções, todos os filmes de série B. Eu sabia quem entrava
nos filmes, reconhecia-os, os intervenientes mais desconhecidos, os atores
secundários, reconhecia as músicas, pois conhecia todas as músicas mais
populares, dado que Rita (Nota: prima 5 anos mais velha que o acompanhava ao
Cinema) e eu nos sentávamos e ouvíamos rádio juntos, incessantemente.
O Make Believe Ballroom, Your Hit Parade. Nesses dias, a rádio tocava
desde o minuto em que acordávamos até aquele em que íamos dormir. Música,
notícias e mais música.
A música pop da altura era Cole Porter, Rodgers and
Hart, Jerome Kern, George Gershwin, Benny Goodman, Billie Holiday, Artie Shaw,
Tommy Dorsey. Assim, aqui estava eu, inundado com música e filmes lindíssimos.
Primeiro, uma sessão dupla todas as semanas, depois á medida que os anos foram
passando, ia cada vez mais. Era tão entusiasmante entrar no Mildwood ao sábado
de manhã, enquanto as luzes ainda estavam acesas e a pequena multidão comprava
os seus doces, e avançava em fila e ia tocando um disco pop para impedir que
quem se ia sentando se amotinasse até as luzes descerem. Harry James -
"I'll Get By". As luzes nos esconsos eram vermelhas. Por fim, as
luzes apagavam-se, as cortinas abriam-se e o ecrã prateado iluminava-se com um
logotipo que fazia salivar o coração, se é que posso misturar as metáforas, com
uma antecipação pavloviana. Vi-os a todos, cada comédia, cada filme cowboys,
cada história de amor, cada filme de piratas, cada filme de guerra."
(págs. 25 e 26)
"Os meus filmes preferidos, em jovem, eram
aqueles que apelidei de "comédias de champanhe". Adorava histórias
que se passavam nas penthouse onde o elevador se abria para o
interior do apartamento e as rolhas saltavam, onde homens elegantes
pronunciavam diálogos esperituosos e encantavam mulheres belas, percorriam as
casas com as mesmas roupas que agora alguém poderia utilizar num casamento no
Palácio de Buckingham.
Estes apartamentos eram grandes, normalmente duplexes,
com muito espaço branco. Ao entrar, a pessoa ou o seu convidado dirigia-se,
invariavelmente, para um bar pequeno e acessível onde eram servidas bebidas
decantadas. Na altura todos bebiam e ninguém vomitava. E ninguém tinha cancro e
a penthouse não tinha fugas e, quando o telefone tocava a meio da
noite, as pessoas que viviam nas alturas sobre Park Avenue ou Fifth Avenue não
tinham, como a minha mãe, de sair da cama e bater com os joelhos no escuro em
busca do instrumento negro para ouvir que um parente talvez tivesse acabado de
morrer. Não. Hepburn, ou Tracy, ou Cary Grant, ou Myrna Loy estendiam a mão
para a mesinha de cabeceira a poucos centímetros de onde dormiam, e o telefone
era normalmente branco e as notícias não andavam em torno de células
metastáticas e tromboses coronárias provocadas por anos a ingerir carnes
mortíferas, mas de enigmas de mais provável resolução como "O quê...?
Como assim não estarmos legalmente casados!?".
(págs. 26 e 27)
"E assim, graças à minha prima Rita, fui
apresentado ao cinema, às estrelas de cinema, à Hollywood da moralidade
patriótica e aos seus filmes milagrosos; e embora ignorasse tudo o que todos me
tentaram ensinar, dos meus pais aos meus professores de espanhol, quando já
tinha dois anos de aprendizagem, Hollywood pegou. Modern Screen, Photoplay.
Bogart, Cagney, Edward G. Robinson, Rita Hayworth - o seu mundo de celuloide,
foi isso que aprendi. O maior do que a vida, o superficial, o falsamente
glamoroso, mas não me arrependo de um fotograma que seja. Quando me perguntam
que personagem dos meus filmes se parece mais comigo no ecrã, basta olhar para
a Cecília em "A Rosa Púrpura do Cairo"."
(pág. 31)
No que a filmes diz respeito, nunca vi
"Charlot nas Trincheiras ou "O Circo" de Chaplin, nem "O
Navegante" de Buster Keaton. Nunca vi qualquer versão de "Assim Nasce
Uma Estrela". Apesar de todos os sábados passados no Midwood Theatre,
nunca vi "O Vale Era Verde" ou "O Monte dos Vendavais" ou
"Camille" ou "A Estranha Passageira" ou "Ben-Hur"
ou muitos outros. "Vidas Nocturnas", "A Casa
Assombrada","A Noiva de Frankenstein", nunca os vi. Não estou a
menosprezar esses trabalhos; isto é sobre a minha ignorância e o porquê de os
óculos não tornarem uma pessoa particularmente literata, muito menos
intelectual. E estas são só pequenas amostras dos buracos da minha erudição.
Até à data, nunca vi "Doido com Juízo ou "Peço a Palavra"."
(pág. 66)
"Prefiro Chaplin a Keaton. Isto é algo que
não cai bem à maior parte dos críticos e alunos de cinema, mas acho-o mais
divertido, embora Keaton fosse melhor realizador.
Estou apenas a realçar alguns ícones que,
surpreendentemente, não significaram tanto para mim quanto para o público em
geral. Como "Quanto Mais Quente Melhor" e "Duas Feras" -
para mim nenhum deles era divertido. Também não gostei de "Do Céu Caiu Uma
Estrela". A bem da verdade, adoraria estrangular o belo anjo da guarda.
"O Grande Amor da Minha Vida" nunca me convenceu. Adorei Hitchcock,
mas não suporto "Vertigo". Sou louco por Lubitsch, mas nunca achei
divertido "Ser Ou Não Ser. "Ladrão de Casaca", por outro lado,
acho o máximo, um ovo Fabergé
Adoro musicais: "Serenata à Chuva",
"Gigi", "Não há Como a Nossa Casa", "A Roda da
Fortuna", "My Fair Lady". Nunca gostei de "Um Americano em
Paris"
Por outro lado, nunca achei "O Grande
Ditador" ou "O Barba Azul" minimamente divertidos. Não
considero, de maneira nenhuma, que quando Chaplin faz saltitar pelo ar aquele
balão com a forma de um globo seja um exemplo de genialidade cómica. Mas quem é
que quer saber o que eu acho?".
(págs. 67 e 68)
Woody Allen em A Propósito de Nada
Jorge Fallorca
Capa: Paulo da Costa
Domingues
Frenesi, Lisboa, Maio
de 2001
Aprendia a caminhar devagar porque o calçado também
se gasta, e além disso não tinha pressa nenhuma.
Está tudo à mão, só é preciso saber chegar-lhe.
Não?
Digo eu, não sei:
se vai à vela, remos ou motor,
mas que já não largou o porto é certo
«Senta aí, homem.»
«Sento porque eu quero. O corpo é meu»
Era sempre assim,
começavam
Foram a Sines pelo caminho velho.
Assomaram ao campo que foi de aviação, e torpes lá che-
garam a Sines.
Ele, tretas & tretas doutros escaldões.
Ele visitou a mana que habita o largo e volto-me já.
Foram:
o miúdo ao patinhas
ela às louças
ele com os olhos lambendo as paredes, dono das
cores.
Depois, voltaram ao porto e foram à maré.
Completos:
galritos
caniço
o peixe doutro nome como
isco
cacilhos nos beiços que se apagam cedo.
Desceram:
pedra riscada, juliana
(fora) a prima da abrótea, mais
uns caramujos de enteter.
Burriés?
Sim.
Mas não tem som.
Só as gralhas do porto:
escreve-se
na areia o que o papel nunca diz, depois
vem o que esquece tudo e nunca soube de nada.
Vento também há, menos.
Cheira.
Pega-se-nos cheio de linhas, telegráfico.
Espécie de renda coando a intimidade das janelas.
Vento:
Cada um a sua, e quantas vezes salpicadas de estrelas,
latindo para as canas.
Disputam-nas:
berreiros, gamanços,
canadas, porrões, copos, pois, e
mais copos por uma cana.
Sendo vidrada, melhor.
Atestado de água boa – sabia-lhe os sítios – foi-se a estes
montes sem dizer:
andou, andou, andar-se
até à beirinha de uma pedra
a olhar pró pessegueiro.
Ham!, é uma forma de dizer, sabe-se lá se não era mas é
a ilha o que estava a ver?
Anda por aí essa
rábula do abaixo -assinado em que o filho do Senhor Teodoro da bomba de
gasolina, o Cardeal Patriarca, uma série de monos, saudosos do salazarismo, se
insurgem contra o facto da obrigatoriedade da disciplina da Educação para a Cidadania.
Nós os vencidos do catolicismo
que não sabemos já donde a luz mana
haurimos o perdido misticismo
nos acordes dos carmina burana
Nós que perdemos na luta da fé
não é que no mais fundo não creiamos
mas não lutamos já firmes e a pé
nem nada impomos do que duvidamos
Já nenhum garizim nos chega agora
depois de ouvir como a samaritana
que em espírito e verdade é que se adora
Deixem-me ouvir os carmina burana
Nesta vida é que nós acreditamos
e no homem que dizem que criaste
se temos o que temos e jogamos
"Meu deus meu deus porque me abandonaste?"
Bateu levemente à
porta, eram 14,31 horas, apresentou-se envergonhadamente e justificou que assim
era porque o Verão ainda anda lá por fora.