As pontes não são o rio.
quinta-feira, 31 de março de 2022
BEM, DEIXEMO-NOS DISTO
Andei a (des)arrumar livros e fiquei com o Mário-Henrique Leiria nas mãos. Ontem coloquei um extracto de Depoimentos Escritos. Hoje mais um, e o livro já está arrumado na prateleira:
«Demiti-me de tudo. Estou só. Aliás, sempre estive. Agora dizem que sou
anarquista, inimigo do Estado. Talvez seja, não sei. O que eu não sou, com
certeza, é oportunista.»
O QU'É QUE VAI NO PIOLHO
Por vezes, o cinema
traz-nos filmes que, não atingindo certos níveis, se tornam simpáticos.
Sideways realizado em 2004 por Alexander Payne, é um desses filmes.
Miles é um professor de inglês, apreciador de vinhos, divorciado e que espera, há largos anos, a sua oportunidade para publicar um livro. Jack é um seu amigo e um actor menor que faz séries foleiras para televisão, ou voz-off para anúncios, e que está prestes a casar. Antes da cerimónia decidem, durante uma semana, fazer uma viagem, há muito sonhada pelos dois, em redor da rota dos vinhos da Califórnia.
Miles é o típico loser americano: a sua vida pessoal está em farrapos, após um divórcio que não consegue digerir, refugia-se em vinhos, em pornografia barata e pelo meio rouba dinheiro do porta-moedas da mãe.
Jack é um vândalo capaz de largar o amigo pela primeira saia que lhe apareça, de provar vinhos enquanto masca pastilha elástica e, dentro do carro, em viagem pelo sol escaldante da Califórnia, abrir uma garrafa de champanhe au naturel.
Numa paragem da rota dos vinhos, conhecem duas raparigas num restaurante. Jack dedica-se a engatar Stephanie, Miles entra numa de “expert” em vinhos e tem uma conversa com Maya, que também percebe de vinhos, e nasce uma conversa que marca o filme.
O diálogo, como todo o filme, é pautado por uma estupenda banda sonora de cariz
jazístico e que, juntamente com as paisagens da Califórnia, dos diálogos, do
humor, tornam Sideways um filme
despretensioso mas bem interessante.
«Maya – Que preciosidades tens na tua colecção?
Miles – Não é uma grande colecção, na verdade. É mais uma pequena colect num armário. Nunca tive dinheiro para isso. Tenho de viver garrafa a garrafa. Estou a poupar uma coisa, sem dúvida. A estrela será o Cheval-Blanc de 1961.
Maya – Tens ali um Cheval-Blanc de 1961?
Miles – Sim, tenho!
Maya – Vai buscá-lo. Estou a falar a sério, despacha-te.
Miles – Já vou, já vou.
Maya – A colheita de 61 está a perder qualidade, não está? Pelo menos foi o que li!
Miles – Sim, é isso mesmo.
Maya – Pode ser tarde demais. De que estás à espera?
Miles – Não sei. Da ocasião especial com a pessoa certa. Devia ser para odécimo aniversário do meu casamento, mas...
Maya – A ocasião especial é quando abrires o Cheval-Blanc de 1961.
Maya – Entrei nisto a sério há cerca de sete anos.
Miles – E qual foi a garrafa responsável?
Maya – Sassicaia de 88.
Miles – Parabéns. Isso é muito bom.
Maya – Porque gostas tanto de Pinot? É uma característica ?
Miles – Não sei, não sei. É uma uva difícil de cultivar, como tu sabes, certo? É de pele fina, é temperamental e amadurece cedo. Não é uma sobrevivente como a Cabernet que cresce em qualquer lado e vinga mesmo sem ser cuidada. Não, a Pinot precisa de cuidados e atenção constantes. Na verdade apenas pode crescer em lugares específicos, em pequenos cantos do mundo. E apenas o mais paciente e carinhoso dos vinicultores consegue cultivá-la. Apenas quem tirar algum tempo para entender o potencial da Pinot pode obter alguma coisa dela na sua máxima expressão. E então, querdizer... o seu sabor é o mais assombroso, brilhante, subtil e o mais antigodo planeta. Os Cabernets também podem ser poderosos e excitantes... maspara mim, parecem-me vulgares, em comparação. E tu?
Maya – O que foi?
Miles – Por que gostas de vinho?
Maya – Acho que me meti no vinho por causa do meu ex-marido. Ele tinha uma grande adega, que usava para se exibir. Mas depois eu descobri que tinha um bom palato. Quanto mais eu bebia, mais gostava daquilo em que me fazia pensar.
Miles – Como o quê?
Maya – Como a fraude que ele era. Eu gosto de pensar na vida do vinho. No facto de se tratar de um ser vivo. Gosto de pensar no que se passou no ano do crescimento das uvas. Como o sol estava a brilhar. Se choveu. Gosto de pensar em todas as pessoas que trataram e colheram as uvas. E se for um vinho velho, quantas delas já devem estar mortas. Gosto da forma como o vinho continua a evoluir. Por exemplo, se eu abrir uma garrafa hoje terá um sabor diferente do que se a abrir em outro dia. Porque na verdade uma garrafa de vinho está viva. E está sempre a evoluir e a ganhar complexidade. Isto é, atingir o seu auge. Como o teu Cheval-Blanc de 61. Depois começa o seu destino lento e inevitável. E sabe maravilhosamente bem.»
NOTÍCIAS DO CIRCO
A jornalada do dia, lido e relido o discurso de Marcelo, também as entrelinhas, conclui, numa unanimidade saloia, que o presidente fechou a porta à saída de Costa para a Europa.
Não saberão os rapazes
das jornaladas que Costa conhece, e muito bem, que no Areeiro existe uma
fábrica de chaves?
quarta-feira, 30 de março de 2022
NO CAIR DA NOITE
… e agora vou acabar de ler um bom e saudável romance policial e liquidar o resto da garrafa de vodka (“Bogka” para fingir que sei russo) que está ao alcance da minha mão direita (como bom deus pagão que posso perfeitamente ser, não tenho o “Filho” à mão direita, mas sim um objecto de maior libertação e realidade).
Mário-Henrique Leiria
em Depoimentos Escritos
NOTÍCIAS DO CIRCO
A nação já tem governo.
Dois meses depois das
Eleições Legislativas o governo, marcado como sendo o XXXIII, foi hoje
empossado.
O discurso do
Presidente já deu pano para um ror de mangas para comentadores e políticos
diversos.
Marcelo avisou Costa
qua não será aceitável sair a meio do mandato.
«Agora que ganhou, e ganhou por quatro anos e
meio, tenho a certeza de que vossa excelência sabe que não será politicamente
fácil que esse rosto, essa cara que venceu de forma incontestável e notável as
eleições possa ser substituída por outra a meio do caminho. Já não era fácil no
dia 30 de Janeiro, tornou-se ainda mais difícil depois do dia 24 de Fevereiro»
terça-feira, 29 de março de 2022
O CAMPEONATO MUNDIAL DA VERGONHA
Nunca fui um grande fã da selecção nacional de futebol, muito menos quando se tornou propriedade privada de Cristiano Ronaldo. Pode não jogar a ponta de um corno, como aconteceu no recente jogo com a Turquia, opinião minha, mas a comentarite aguda das televisões e da jornalada, lá trataram de o levar aos céus.
Tudo aponta que
Portugal vença a modesta Macedónia do Norte, mas não gostaria de ver Portugal naquele Campeonato do Mundo no Catar, gostaria mesmo que esse
campeonato não acontecesse.
Aquele campeonato só
acontece porque os trogloditas árabes encheram a FIFA e a UEFA & Cª Lda, de
toneladas e toneladas de dólares.
Nunca houve uma
investigação rigorosa ao modo como um Campeonato do Mundo aparece plantado no Catar.
No decorrer da
construção dos estádios, das estradas, dos hotéis e sabe-se lá mais o quê, já
morreram perto de 7.500 trabalhadores migrantes que ali chegaram provenientes
dos países pobres da Ásia e de África. e que estão a trabalhar em condições de
segurança e higiene verdadeiramente deploráveis um atentado aos direitos humanos.
Se os jogadores de
futebol, os treinadores, pensassem em algo mais que o dinheiro, deveriam
juntar-se, e numa forte manifestação, de recusa em estarem presentes naqueles
estádios de autêntica vergonha.
QUEM? O INFINITO?
Alexandre O’ Neill
está no quintal da casa, só, completamente só, tarde quente no Verão, bebericando
copinhos de bagaço gelado, olha o gato, cúmplice
de um medo ainda sem palavras, sem enredos, quem somos nós, teus donos ou teus
servos?, batem à porta, do interior dizem qualquer coisa, ele pergunta:
-Quem? O infinito?
Diz-lhe que entre.
Faz bem ao infinito
estar entre gente.
-Uma esmola? Coxeia?
Ao que ele chegou!
Podes dar-lhe a bengala
que era do avô
-Dinheiro? Isso não!
Já sei,pobrezinho,
que em vez de pão
ia comprar vinho...
-Teima? Que topete!
Quem se julga ele
se um tigre acabou
nesta sala em tapete?
-Para ir ver a mãe?
Essa é muito forte!
Ele tem não tem mãe
e não é do Norte...
-Vítima de quê?
O dito está dito.
Se não tinha estofo
quem o mandou ser
infinito?
segunda-feira, 28 de março de 2022
O VERVADEIRO ARCO-IRÍS DA MINHA INFÂNCIA
Não é lamúria, mas ainda não consegui endireirar o
esqueleto.
As ideias andam aos solavancos.
As palavras – as palavras? - recusam-se a dizer seja o
que for, não saem e o que sai não tem qualquer jeito.
Neste baralhar confuso de cartas mais que viciadas, as
leituras também não mostram vislumbres de endireitar o tal esqueleto e a cabeça
que o encima.
Decidi neste dia de chuva – em que estação de caminho
de ferro ficou a Primavera, esperará um recoveiro? – voltar a pegar na
Autobiografia de Woody Allen que foi
lida assim um tanto a correr não sei para onde.
O Luís Miguel Mira já fez por aqui uns apanhados do
livreco, chamando-lhes «Tiradas».
Irei fazer outros apanhados. Repetirei cenas? Admito
que sim, mas…
Será um lugar, talvez de silêncio, perante um
realizador que me habituei a gostar desde o primeiro filme, e ficava sempre à
espera de quando chegava o tempo de novo filme, como em cada Outono esperava pelo
último livro do António Lobo Antunes, até que o desencanto se instalou naquele
lugar de silêncio, talvez de solidão…
Agora nem Allen – virou propagandista turístico – e
Antunes virou um insuportável chato.
«Mas deixem-me voltar aos filmes, a paixão de Rita. Agora lembrem-se,
eu tenho cinco anos, e ela tem dez. Para lá de cobrir as paredes com
fotografias coloridas de todas as estrelas de Hollywood, ela ia frequentemente
ao cinema, o que significava todos os sábados à tarde para a sessão dupla,
normalmente no Midwood, e embora fosse com amigos, levava-me sempre. Eu via
todos os filmes que Hollywood lançava. Todas as grandes produções, todos os
filmes da série B. Eu sabia quem entrava nos filmes, reconhecia-os os
intervenientes mais desconhecidos, os atores secundários, reconhecia as
músicas, pois conhecia todas as músicas mais populares, dado que Rita e eu nos
sentávamos e ouvíamos rádio juntos incessantemente. O Make Believe
Ballroom, Your Hit Parade. Nestes dias, o rádio tocava desde o minuto
em que acordávanos até àquele em que íamos dormir. Música, notícias, e mais
música.»
Woody Allen em A Propósito de Nada
Legenda: Luís Miguel Mira «vendendo» bilhetes a Woody Allen no «Chaplin's World»
domingo, 27 de março de 2022
POSTAIS SEM SELO
… ou apenas o tédio de uma tarde de
domingo no café.
Manuel António Pina
Legenda: fotografia de Saul Leiter
OLHAR AS CAPAS
Elas Estiveram nas Prisões do Fascismo
Colaborações diversas
Capa: fotografia
prisional de Albina Fernandes que na PIDE recusou
ser separada do seu filho no
momento da fotografia.
Colecção Páginas de Memória
nº 5
Edição da União de Resistentes Antifascistas Portugueses, Lisboa Fevereiro de 2022
Na sequência de uma luta dos presos de Caxias reclamando o internamento
hospitalar dado o seu estado de saúde, Georgete Ferreira encontrava-se no
Hospital dos Capuchos quando fugiu em 4 de Outubro de 1950. Aqui reparou que um
laboratório onde ia fazer análises tinha uma porta que dava directamente para a
rua. Pediu então à família que lhe levasse roupa que escondeu. Na referida data
em que tinha de se deslocar ao laboratório vestiu a roupa por debaixo do robe.
Contou com a cumplicidade de um médico que lhe facilitou a ida a uma casa de
banho onde abandonou o robe e mudou o penteado. Na rua aguardava-a um carro
pois a fuga tinha sido articulada com a Direcção do PCP.
Georgete Ferreira, natural de Vila Franca de Xira, costureira,
funcionária clandestina do Partido Comunista Português, foi membro do seu
Comité Central e foi presa em 1949 e 1954, tendo estado cinco anos na prisão de
Caxias.
sábado, 26 de março de 2022
POSTAIS SEM SELO
Construir uma cabana para mim no Utah, casar-me com uma mulher, apanhar truta arco-íris, ter um rancho de filhos que me chamem «Papá».
Deve
ser a isso que tudo se resume.
Bob
Dylan
sexta-feira, 25 de março de 2022
quinta-feira, 24 de março de 2022
POSTAIS SEM SELO
«No campo da ignorância, faço parte daqueles que durante os tempos da pandemia acreditaram que uma imposição tão forte da natureza despertaria nas sociedades um novo sentido de fraternidade, obrigados que fomos a nos sentirmos habitantes da terra unidos pelo mesmo desafio.»
Lidia Jorge
A GUERRA VISTA DO CAFÉ DO MONTE
— Sabes como se acabava depressa com esta guerra?
— Matava-se o Putin...
— Não era preciso.
— 'atão?
— Dizia-se aos chineses. Ou esta
merda acaba ou acabaram-se as compras! Vão vender 'prá Russia. Era num
instantinho.
Ana Cristina Leonardo em Meditação Na Pastelaria
FAZEI COM QUE HAJA LIVROS SEM FIM!
Há livros que nunca acabei, assim de repente, lembro dois: Ulisses e Em Busca do Tempo Perdido.
Mas não me recordo de
levar tanto tempo a ler um livro, e não pela quantidade de páginas, 480.
Falo-vos de Para Quê Tudo Isto?, biografia de Manuel
António Pina, escrita por Álvaro Magalhães.
Comecei a lê-lo no dia 2 de Fevereiro, acabei-o há pouco.
Ficou todo pintado de
sublinhados e comentários.
Há algum tempo tratei
de avisar os meus netos que quando pensarem em vender os meus livros para
comprar gomas, chiclets e outras coisas mais, não terão sorte nenhuma porque os
meus livros não estão, como querem os alfarrabistas, «em bom estado de conservação,
não têm o miolo limpo, as lombadas mostram sinais de quebras».
Acontece que os meus
livros foram abertos, foram lidos, quase nenhum ficou «como novo».
Andei a saborear as
páginas.
Quando o Álvaro Magalhães refere um poema do Pina, fui aos livros de poemas, reli o poema e debrucei-me para outros. O mesmo com
as entrevistas do Pina que são citadas, e fui até Dito em Voz Alta que contém algumas dessas entrevistas e por ali
fiquei a perder/ganhar tempo.
Nesta manhã cinzenta
de uma Primavera a atirar para o parvo, estou «chateado» por ter acabado de ler
a biografia do Pina.
Queria que ela fosse interminável.
OLHAR AS CAPAS
Virá a Morte e Terá os Teus Olhos
Cesare Pavese
Tradução: Rui Caeiro e
Rui Miguel Ribeiro
Posfácio: Rui Caeiro
Capa: Rui Miguel
Ribeiro
Edições do Saguão, Lisboa, Abril de 2021
Virá a morte e terá os teus olhos —
esta morte que nos acompanha
de manhã até à noite, insone,
surda, como um remorso antigo
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma palavra inútil,
um grito reprimido, um silêncio.
Assim os vês todas as manhãs
quando sozinha te inclinas
diante do espelho. Ó cara esperança,
nesse dia saberemos nós também
que és a vida e és o nada.
Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como abandonar um vício,
como ver no espelho
ressurgir um rosto morto,
como escutar lábios fechados.
Mudos, desceremos ao abismo.
quarta-feira, 23 de março de 2022
AS LÁGRIMAS DO JORGE
Em alguns filmes, Jorge Silva Melo chorava que nem uma Madalena.
Deixou escrito que no
2º Balcão do S. Luiz chorou com Chá e
Simpatia de Minelli.
Ao ver, ao rever,
vezes sem conta, O Vale Era Verde de
John Ford, chorava.
Acabava de ver os filmes e um mundo de lágrimas envolvia-lhe os sentidos.
«Mas vê-se sempre O Vale era Verde, de maneira diferente porque de todas as vezes se chora de maneira diferente. Já ao ver este filme, chorei infâncias perdidas, quando mais para aí me dá o sentimento; ou a morte dos pais; ou a miséria da mina, ventre infernal do capitalismo; ou a honra dos trabalhadores; ou a coragem das mães; ou as refeições em silêncio; ou o casamento da irmã; ou as longas doenças da infância com os primeiros romances lidos na cama; ou a chegada da Primavera, ou o cheiro a sabão azul e branco, o acreditar que “um homem não chora”, o acreditar no silêncio dos homens e na determinação das mulheres, na honra, no valor do trabalho, no fluir inexorável da vida, na impossibilidade do regresso, na consciência da luta. E também nos aventais brancos, nas grandes almofadas, no banho na celha, na água a ferver...»
Sobre O Vale Era Verde escreveu João Bénard da Costa:
«Não há filme que me faça mais saudades.»
OLHAR AS CAPAS
Autobiografia Não Autorizada
Dulce Maria Cardoso
Capa: V. Tavares
Edições Tinta-da-China, Lisboa Junho de 2021
Quando nasci, a minha mãe já se moldara à mulher que cabia no nosso quotidiano. Se os ares de África não a trouxessem sempre doente, se engordasse uns bons quilos, quase nada a distinguiria das vizinhas. Mas a outra mulher, a que fugiu, continuava escondida nela, de certeza. Uma mulher como as dos filmes que eu via no cinema, nas tardes de domingo, uma mulher capaz de pegar numa arma para defender dos malfeitores a sua casa, de dançar em cima de uma mesa da taberna, de cavalgar desabrida por desfiladeiros, de percorrer sem pestanejar o salão de baile do palácio sob o olhar de todos. Ou de fugir de casa dos pais para viver com o homem que amava. Essa mulher também foi minha mãe, também é minha mãe. Também ela me criou. Nunca deixei de procurar na minha mãe do dia adia. E sempre a fui encontrando. Encontros fugazes. Mudos. Sorrimos uma para a outra e tenho a sensação de que ela me pisca o olho.
Colaboração de Aida
Santos
INOMINATO NOME
Catarina Gomes em Furriel Não É Nome de Pai, coloca duas epígrafes. Uma da antropóloga Françoise Zonabend e um excerto de um poema
de Rui Knopfli: Inominato Nome.
Fica aqui o poema completo:
Persigo-o no ininteligível arbítrio
dos astros, na clandestina linfa
que percorre os túrgidos corredores
do indecifrável, nos falsos indícios
que, de fogos fátuos, escurecem
a persistente incógnita do nome.
Em persegui-lo persisto onde, bem
sei, não lograrei achá-lo, que nunca
achado será em tempo ou espaço
que excedam meu limite e dimensão.
Um nome, ainda obscuro, pressinto
no sal da boca amarga, Conheço-lhe
o rosto familiar, desfocado embora,
no halo do tempo e da distância.
É, creio, a face indefectível de tudo
quanto tenho de calar. Este nome
(este rosto) habita-me silente, contra
a recusa, a mentira, ou a calúnia.
Na epiderme, nos nervos e na carne,
sobre a língua e o palato, adivinho-lhe
forma, sabor e propósito. Ouço-o
dentro de mim, mau grado
o queira ou não, que em mim
só está sofrê-lo porque em mim
vive e dura, enquanto eu dure e viva.
E não por meu mal, que meu
mal seria, mais que perdê-lo,
sem ele viver.
Um rosto persigo,
um nome guardo no sal da boca
amarga, na pedra árdua da memória,
no discurso penosamente reiterado
do sangue. Nenhum silêncio
lhe dará cobro, nem fim que
não sejam meu fim e meu silêncio.
DOS REBOTALHOS E COISAS ASSIM...
A pandemia, a Guerra na Ucrânia, a fria e chuvosa chegada da Primavera, o verificar que, em menos de uma semana, o brutal aumento de preços no supermercado que já preanunciam os dias mais terríveis que vão chegar.
1.
O primeiro-ministro considera que hoje é um dia histórico, assinalando que a democracia nascida em 25 de Abril de 1974 ultrapassa em um dia a longevidade da ditadura resultante do golpe de 28 de maio de 1926.
«Hoje é um dia histórico. Hoje a liberdade ultrapassa os 17.499 dias da ditadura: 17.500 dias em Liberdade»
2.
As autoridades
portuguesas só conseguiram congelar uma conta bancária de oligarcas russos onde
encontraram 242 euros. Também parecem desconhecer os apartamentos, os carros,
as quintas, as mansões, os iates, os jactos privados dos ditos oligarcas. De todas
sa raças e credo, que ainda se passeiam pela Avenida da Liberdade.
Ao que parece, para acederem aos vistos gold, utilizaram cidadanias compradas em paraísos tropicais e em países obscuros.
Não parecem ser russos, mas se quiserem ver oligarcas gold de outros países, onde o povo passa fome e necessidades básicas, percam um bocadinho tempo nos andares no El Corte Inglês, especial incidência no supermercado.
3.
«A invasão da Ucrânia não resulta de um delírio de Putin. É função de um projeto que ele explicou claramente: restabelecer fronteiras do império czarista e corrigir o alegado erro da URSS na independência da Ucrânia. Confiante na superioridade militar e menosprezando um povo soberano que não reconhece, é evidente que Putin se enterrou numa guerra que só pode perder. Nenhum dos seus objetivos pode ser alcançado, e sairá disto numa posição enfraquecida. Em todo o caso, não foi a loucura que o determinou, mas sim um cálculo errado, que dá a vitória aos Estados Unidos. É pior do que a loucura irracional, é a vontade da guerra e da ocupação que conduz as tropas russas. Esta guerra é uma escolha, não é uma alucinação. É pior e faz do mundo um lugar mais perigoso.»
Francisco Louça
4.
A Procuradoria-Geral da República
confirmou que vai interpor recurso da decisão do Tribunal Central de Instrução
Criminal que levantou a medida de coação de apresentação quinzenal ao arguido
de Mário Machado
Mário Machado, com ligações a diversas
organizações de extrema-direita, é atualmente arguido num processo de
incitamento à violência e ao racismo.
anunciou que iria, juntamente com outras vinte pessoas, deslocar-se até à Ucrânia para combater.
Alguém na Ucrânia já declarou: «não queremos
este tipo de pessoas entre nós.»
5.
O Vice-Primeiro ministro da Polónoa culpa Angela Merkel e a União europeia pelo «poder» de Vladimir Putin.
6.
A ministra da Agricultura disse ontem que o Governo rejeita falhas no abastecimento alimentar.
Será que os ministros, os secretários de estado, frequentam mercearias e supermercados?
7.
Uma análise feita
pelo semanário Expresso a 500 ofertas
de Centros de Empregos mostrou que baixos salários e contratos a termo são a
regra das ofertas de emprego.
Legenda: pintura de Mihai Criste
terça-feira, 22 de março de 2022
POSTAIS SEM SELO
Françoise Zonabend, epígrafe no livro Furriel não é Nome de Pai
ESTENDI NA AREIA MULHERES DE TODAS AS CORES
Este livro tem o subtítulo: «Os Filhos Que Os Militares Portugueses Deixaram Na Guerra Colonial».
A imagem é a reprodução da contra capa do livro.
O livro é da autoria
de Catarina Gomes, ex-jornalista do Público.
«Tudo começou com uma viagem à Guiné,
em 2013, com o objetivo de revelar, no Público, estas histórias da História que
ficam por contar. Seguiram-se quatro anos em que os contactos com estes filhos
e filhas, de identidade truncada, se foram multiplicando. A maioria tem como
única herança dos pais uma vida inteira de discriminação: eram “filhos de
tuga”; eram filhos do “inimigo”. Pelo meio, também há (re)encontros felizes.
Catarina Gomes escreve que “todos os dias morrem metades desta história” – os
pais portugueses estão na fase final das suas vidas (os filhos têm entre 40 e
50 anos). As relações entre militares portugueses e mulheres africanas são,
muitas vezes, romantizadas – todos os filhos gostam de se imaginar fruto de um
grande amor. Contudo, estas crianças também foram fruto de casos de prostituição,
de agressões sexuais ou de violações. Catarina Gomes chama-lhe um livro de
pós-reportagem, no qual conta o que aconteceu, depois da publicação das
histórias no jornal, e se assume como participante no enredo, em busca destes
pais desaparecidos. Sem alarido, numa comoção sublime.»
Fernando Hedgar da
Silva depositava grandes esperanças no encontro com um ex-militar português,
que tinha optado por permanecer na Guiné após o fim da Guerra Colonial
(1961-1975). Quando o homem lhe perguntou como se chamava o pai, Fernando
respondeu o único nome que a mãe, timidamente, lhe havia dito: “Furriel. O meu
pai chama-se Furriel.” O ex-militar ficou incrédulo e explicou-lhe que Furriel
não era um nome; antes uma patente. Afinal, Fernando sabia menos de nada sobre
o seu pai. E era esse vazio que o preenchia quase por inteiro.
António Gedeão é
autor de Poema da Malta das Naus, um lindíssimo poema que deu uma muito bonita
canção de Manuel Freire:
Lancei ao mar um madeiro,
espetei-lhe um pau e um lençol.
Com palpite marinheiro
medi a altura do Sol.
Deu-me o vento de feição,
levou-me ao cabo do mundo.
pelote de vagabundo,
rebotalho de gibão.
Dormi no dorso das vagas,
pasmei na orla das prais
arreneguei, roguei pragas,
mordi pelouros e zagaias.
Chamusquei o pelo hirsuto,
tive o corpo em chagas vivas,
estalaram-me a gengivas,
apodreci de escorbuto.
Com a mão esquerda benzi-me,
com a direita esganei.
Mil vezes no chão, bati-me,
outras mil me levantei.
Meu riso de dentes podres
ecoou nas sete partidas.
Fundei cidades e vidas,
rompi as arcas e os odres.
Tremi no escuro da selva,
alambique de suores.
Estendi na areia e na relva
mulheres de todas as cores.
Moldei as chaves do mundo
a que outros chamaram seu,
mas quem mergulhou no fundo
do sonho, esse, fui eu.
O meu sabor é diferente.
Provo-me e saibo-me a sal.
Não se nasce impunemente
nas praias de Portugal.
OLHAR AS CAPAS
Furriel Não É Nome de Pai
Catarina Gomes
Capa: V. Tavares
Tinta-da-China,
Lisboa, Maio de 2018
O próximo telefonema que planeia fazer ao filho é quando entrar na reforma. Já pensou em várias formas de dar a volta aos custos tão elevados da viagem a Angola. Uma das hipóteses é, em vez de ir de avião, embarcar num cargueiro até Benguela e depois ir até Luena de comboio, uns 15 dias. «Até aos 70 anos vou lá outra vez.» faltam quatro. Quer por tudo ir visitá-lo de novo e ficar lá uma temporada, «uma espécie de comissão para ir conhecer o meu Jorge. Não o fiquei a conhecer». O encontro converteu-os em pai e filho, continuam estranhos.
segunda-feira, 21 de março de 2022
THE MAN IN BLACK
“…Well you wonder
why I always dress in black
Why you never see
bright colour in my back
And why does my
appearance seem to have a somber tone
Well, there’s a reason for the things that I have on
I wear the black
for the poor and beaten down
Living in the
hopeless, hungry side of town
I wear it for the
prisoner who has long paid for his crime
But is there
because he’s a victim of the times”
(Johnny Cash – Man in Black)
Há tempos, a propósito de Hank Williams, contei-vos que na minha juventude, com um misto de snobismo e enorme ignorância, sentia alguma aversão pela “Country Music”, embora abrisse uma exceção para Johnny Cash.
Não posso garantir, mas é muito provável que o primeiro contacto que tive com a obra de Cash tenha sido o álbum “At San Quentin”, lançado em 1969, tal a forma como esse disco me marcou: a voz de Cash, o acompanhamento musical, a companhia da sua mulher, June, em algumas canções, e aqueles inesquecíveis “pis” de censura cada vez que Cash largava um palavrão, o que sucedia com muita frequência.
É provável que também tivesse achado louvável essa ideia de gravar um disco numa prisão (até era o segundo, mas isso não o sabia eu, na altura), numa época em que quase tudo o que se gravava ao vivo era em festivais de música ou em grandes salas de espetáculo. E se os prisioneiros se faziam ouvir bem nesse disco…!
E sempre mantive um
grande carinho em relação a Johnny Cash, que nasceu em 1932 em Kingsland, no
Arkansas, quinto filho de um casal de fazendeiros muito pobre.
Não teve vida fácil, a começar pela escolha do nome. Pai e mãe não se entenderam e ele acabou por ser registado J. R., assim mesmo, só com as iniciais…! Mas quando chegou ao exército não aceitavam iniciais como nome, e ele teve de transformar o J. R. em John Ray, que depois passaria a Johnny quando começou a cantar como profissional.
Com 5 anos já trabalhava nos campos de algodão e a memória que guardou desses tempos assenta que nem uma luva a tudo quanto vos tenho contado acerca da importância da música ligada ao trabalho rural, seja nas planícies de algodão do Mississippi ou nas plantações de tabaco dos Apalaches:
“A música e as canções eram o que nos distraia do trabalho árduo dos campos. Transportava-nos … Transportava os nossos espíritos para longe do trabalho, para longe da dor e para longe do sofrimento. Se não tivéssemos podido cantar, acho que não teríamos aguentado. Cantar ajudava a encurtar o dia…”.
Desses tempos de
infância guardou um trauma que o acompanharia por toda a vida. Numa tarde de
sábado em que fora pescar e tomar banho no rio, o irmão Jack, uns anos mais
velho, ficou a trabalhar numa quinta para ajudar no sustento da casa e morreu
quase cortado ao meio, num acidente com uma motosserra. Cash nunca perdoou a si
próprio ter-se ido divertir, em vez de ter ficado a ajudar o seu irmão
preferido. Mas, mesmo que se quisesse esquecer desse triste acontecimento, o
seu pai trataria de não o deixar, deitando-lhe frequentemente à cara ter sido
uma lástima ter morrido o “filho bom” e ter ficado vivo o “filho mau”…
Imagine-se o efeito disto em alguém que já de si mostrava alguma tendência para
a depressão…
Na música, tal como Hank Williams e Elvis (só para referir quem já por aqui passou…), também começou pelo “Gospel”, embora sem grande sucesso público nos primeiros tempos. Mais tarde, já consagrado, haveria de editar diversos LP’s de “Hymns”.
Mas seria em Memphis,
em 1955, pouco tempo depois de ter regressado do Serviço Militar na Alemanha,
que faria a primeira gravação (“!Cry!, Cry!, Cry”), na célebre “Sun Records” de
Sam Philips, de que um destes dias vos falarei. Durante os anos que se seguiram
Cash foi, juntamente com Elvis Presley, Carl Perkins e Jerry Lee Lewis, uma das
principais figuras desse lendário estúdio que viu nascer o Rock ‘n’ Roll, tendo
ficado na sua história como o primeiro “da casa” a lançar um LP.
Depois, andou sempre
pelos sítios certos e esteve, quase sempre, do lado certo da barricada.
Bateu-se pela reforma do sistema prisional, apelou à dignidade e ao reconhecimento dos direitos civis do povo Índio, a quem em 1964 dedicou um álbum inteiro, este “Bitter Tears” que vos mostro, com o subtítulo de “Ballad of the American Indian. E também condenou a Guerra do Vietname, como veremos adiante.
Em 1980, quando entrou para o “Country Music Hall of Fame”, em Nashville, a respetiva placa descreve-o da seguinte forma: SONGWRITER, HISTORIAN, FIGHTER OF CAUSES, FRIEND TO THE DEPRIVED AND TROUBLED….
Embora associemos sempre Cash às prisões e a uma vida de “outlaw”, a verdade é que pode ter entrado em muitas, mas só passou uma noite numa prisão. Foi em El Paso, no Texas, após ter sido apanhado a atravessar a fronteira entre o México e os EUA com anfetaminas escondidas no interior da guitarra.
Foram tempos difíceis para ele, esses da primeira metade dos anos sessenta em que se viciou nas anfetaminas, alegadamente para conseguir aguentar a dureza da vida na estrada, com espetáculos uns atrás dos outros e a longas distâncias uns dos outros.
Álcool e drogas é
mistura explosiva, já se sabe, e nem sempre Cash terá feito boa figura. Um
exemplo disso é a sua participação, meio-pedrado, no célebre programa de
televisão de Pete Seeger, “Rainbow Quest”, em 1966. Está disponível no YouTube,
para quem o quiser ver.
Algures por essa altura mergulhou nos olhos azuis de June Carter, com quem tinha gravado um LP e com quem já tinha andado em “tournée” desde o início dos anos sessenta, e nunca mais voltou à tona.
Parece não lhe ter
sido fácil nem obter o “sim” de June e a aprovação da mãe dela, a célebre
Maybelle Carter da Carter Family de que já aqui vos falei, nem, sobretudo,
deixar para trás a mulher, Viviane Liberto, com quem se casara em 1954 e as
quatro filhas do casal.
E essa hesitação ainda mais terá agravado a sua dependência do álcool e das drogas.
É a altura em que nos
questionamos se fará sentido tentar construir a nossa própria felicidade à
custa da infelicidade de alguém…
É quando se pensa nas
crianças… Nos pequenos gestos essenciais… O beijo na testa, o aconchegar do
cobertor, o último olhar para a serenidade desses rostos adormecidos antes de
se apagar a luz e de se fechar a porta do quarto, que nunca mais se farão da
mesma maneira.
“I wonder if she’s
sorry
For leavin’ what
we’d begun
There’s someone
for me somewhere
And I still miss someone”
É a saudade que fica
a remoer-nos por dentro…
Mas Cash foi determinado e libertou-se do álcool e das drogas, condição imposta por June e pela sua mãe. Casaram em 1968, tiveram um filho, John Carter Cash, hoje também músico, e viveram felizes para sempre numa bonita casa em Hendersonville, mesmo à beira do “Old Hickory Lake”, a 30 km de Nashville.
Não pretendo maçar-vos contando a vida de Cash de fio a pavio, mas apenas duas ou três histórias reveladoras do seu carácter e da sua personalidade.
Embora não tenha aderido inteiramente à causa, foi “compagnon de route” dos “folksingers” dos anos sessenta e grande amigo de Pete Seeger e de Bob Dylan, entre tantos outros. Muitos deles foram convidados para o lendário “show” semanal que manteve durante alguns anos na cadeia ABC, “The Johnny Cash Show”, apesar de ter sofrido pressões de toda a natureza.
Por exemplo, para não convidar o “perigoso comunista” Pete Seeger, impedido de aparecer nos canais de grande difusão desde os tempos da “caça às bruxas”. Não só o convidou, retribuindo-lhe o favor que ele lhe fizera anos antes, como declarou em direto para quem o quis ouvir:
“As pessoas com
quem tenho contactos disseram: “como te atreves a ser, supostamente, um bom americano
e ter um comunista como Pete Seeger no teu programa de televisão?” O Pete
Seeger que eu conheço e o Pete Seeger pelo qual eu e June nos encantámos, diria
que é um dos maiores americanos e patriotas que já conheci”.
Numa outra ocasião, no mesmo programa, foi pressionado para censurar a canção de Kris Kristofferson “Sunday Morning Sundown”, retirando-lhe a expressão “wishing, Lord, I was stoned” e substituindo-a por “wishing, Lord, I was home”…! Recusou, é claro.
E já que vos evoquei Nixon, em 1972 o Presidente, de quem Cash não era apoiante, convidou-o para atuar na Casa Branca, e pediu-lhe que cantasse “Welfare Cadillac”, uma canção de Guy Drake de que ele gostava muito e que satirizava as pessoas que, alegadamente, viviam à custa da Segurança Social, naquela dita “subsidiodependência” cuja critica hoje parece estar tão na moda na nossa direita radical mas que, afinal, não é original e já vem de longe. Só substitui Cadillac por Porsche…!
Cash sabia muito bem que o seu convite para a Casa Branca tinha uma intenção política, que era a de, em vésperas da campanha desse ano, piscar o olho ao eleitorado do Sul, essencial para Nixon e grande fã do cantor. Mas, como bom americano que era, fiel ao seu país e respeitador da sua Presidência, não lhe passou pela cabeça recusar o convite. Pelo contrário, levou a Família inteira e fez questão de mostrar ao seu velho pai como é que o “filho mau” era bem recebido pelo Presidente dos Estados Unidos.
Cash não abriu muito o jogo quanto às canções que iria interpretar nessa noite, nem aos membros da sua própria banda. Mas era claro que não iria cantar a tal “Welfare Cadillac” pedida por Nixon, por não estar disposto a gozar com os mais pobres e os mais desprotegidos da América.
Em contrapartida, cantou “What is True”, que acabara de compor, uma subtil canção de protesto e um libelo contra a Guerra do Vietname como havia muitas na “Folk”, mas que não eram nada habituais na “Country Music”. Perante uma Casa Branca enredada em mentiras e falsas acusações no que respeitava a essa Guerra, Cash nunca ousaria hostilizar frontalmente Richard Nixon, pelo que a canção é subtil e a mensagem sublimar, de tal forma que a maior parte da ilustre assistência de mais de 250 pessoas, aperaltada a rigor, bateu palminhas sem se ter apercebido de nada…
Ainda a propósito do
flagelo das drogas e da canção de Kristofferson, Cash afirmaria mais tarde:
“Passo muito do meu tempo a lidar com drogados e alcoólicos e só alguém que já teve esse problema é que pode ter, completamente, o amor, a compaixão e a compreensão por essas pessoas. Eu adoro drogados e adoro alcoólicos”.
E, depois, a conclusão, que talvez não esperássemos ouvir da boca dele com tanta clareza:
“Se alguma pessoa perdida e solitária numa cama suja e num quarto escuro conseguir ver a luz de Jesus Cristo em mim, então essa será a minha recompensa...”
Foi a fase em que Cash se assumiu como o católico que sempre foi, e colaborou com o seu amigo Pastor Evangelista Billy Graham, participando em alguns dos seus megaeventos religiosos.
Personagem contraditório, certamente, e foi mesmo “a walking contradiction” que Kris Kristofferson lhe chamou nos belíssimos versos da sua canção “The Pilgrim”, de 1971, que alegadamente lhe é dedicada:
“He’s a poet, he’s
a picker
He’s a prophet,
he’s a pusher
He’s a pilgrim and
a preacher and a problem when he’s stoned
He’s a walking
contradiction, partly truth and partly fiction,
Takin every wrong direction on his lonely way back home”
Mas a partir dos finais dos anos 70 a sua carreira entrou em declínio.
Ao fim de quase trinta anos e de milhões de discos vendidos, a Columbia Records não lhe renovou o contrato, e o mesmo iria suceder com a Mercury, uns anos depois.
Aos seus espetáculos, que habitualmente atraiam milhares de pessoas, iam agora não mais de algumas poucas centenas.
Em meados dos anos 80 tentou mudar de estilo, integrando o supergrupo “The Highwaymen”, com os amigos Waylon Jennings, Kris Kristofferson e Willie Nelson, mas foi sol de pouca dura.
Para dificultar ainda mais as coisas voltaria às drogas, alegadamente para lhe atenuarem os graves problemas de estômago de que se queixava.
Mas ainda haveria de ter um derradeiro “come-back” nos anos 90 com uma série de discos muito sóbrios para a “American Recordings”, sob a orientação do Produtor Rick Rubin, em que se apresenta só com a sua voz e a sua guitarra acústica, contendo algumas “covers” de autores contemporâneos que lhe permitiriam tocar um público mais jovem.
Mas com a morte de June, em 2003, “the man in black” ainda mais de negro se vestiu. Não apenas por fora, mas ainda mais por dentro, seguramente…
“Ela era o meu pilar. A minha conselheira, a minha consoladora e tudo o mais. Que Mulher maravilhosa que ela era…!”.
Passariam menos de
quatro anos até que Cash se lhe fosse juntar.
Tinha 71 anos, mas aparentava muito mais…
A sua vida mereceria um filme bem melhor do que aquele a que teve direito (“I Walk The Line”, de James Mangold - 2005).
Como sempre gostei de visitar casas onde as pessoas viveram felizes para sempre, apeteceu-me dar um saltinho a Hendersonville.
O programa para esse dia estava carregado porque teria de entrar no Kentucky para ir a Hodgenville, que é o lugar onde Lincoln nasceu e viveu toda a sua infância e adolescência, e depois ainda teria de passar por Rosine, ainda no Kentucky, que foi o local onde Bill Monroe e os seus rapazes literalmente inventaram um novo género musical, o “Bluegrass”.
Hendersonville não ficava propriamente em caminho, pelo que teria de fazer um pequeno desvio.
O dia também tinha nascido muito chuvoso, o que não augurava nada de bom para a viagem.
No mapa Hendersonville era já ali ao virar da esquina, mas, como sempre sucede nos Estados Unidos, esses “pequenos desvios” tornam-se sempre muito longos.
Durante o trajeto a chuva aumentara ainda mais e quando estacionei o carro defronte da casa de Johnny e June Cash foi como se tivesse chegado a uma delegação do Pentágono. Alertas, ameaças, proibições de todo o tipo...
Gostaria de ter entrado.
Não para bisbilhotar a casa, que já sabia ter ficado meio destruída por um incêndio pouco tempo depois de Barry Gibb, dos Bee Gees, a ter comprado, mas para me sentar por breves instantes no alpendre sobre o lago, como John e June se costumavam sentar, sentir o vento no rosto, como eles sentiam, poisar o olhar nas águas calmas do lago, como eles poisavam…
Em circunstâncias
normais estar-me-ia nas tintas para as proibições… Não havendo sinais de
cães de guarda que me incomodassem, saltaria lá para dentro, daria as minhas
voltas e, se tocasse algum alarme daqueles à distância, quando alguém lá
chegasse o mais certo seria eu já estar a milhas...
Mas a chuva não tinha parado e se já estava encharcado só de tirar fotografias, saltar aquele muro deixar-me-ia num estado deplorável e incapaz de prosseguir viagem.
Afastei-me, então.
Fiz uma última saudação íntima ao “man in black” e avancei para a terra de Lincoln, Homem que, curiosamente, também me lembro de ter sempre visto vestido de preto,,,
PS:
As citações aqui reproduzidas foram retiradas dos documentários “I Am Johnny Cash”, de Jordan Tappis e Derick Murray”, realizado em 2016, e “Nixon And The Man in Black”, de Sara Dosa e Barbara Kopple, realizado em 2018. Este último está disponível na Netflix e detalha com rigor o “episódio Casa Branca”.
Texto e fotografias de Luís Miguel Mira
domingo, 20 de março de 2022
DE CADA VEZ
Contínua realidade que me sorves os dias
como hei-de responder-te se vives incluída
dos meus olhos abertos nas ávidas e frias
pedras incertas da vida
prisioneira do espelho que embacias
de cada vez que a turva suicida
torna ao morrer visíveis
as formas com que comes os meus dias
Gastão Cruz em Rosa do Mundo
E SE A PRIMAVERA FOSSE O TAL MOTIVO A INVENTAR?
Como disse o poeta Ruy Belo:
E eu chego e sento-me ao lado da primavera.
E
seria o tempo do Jorge Silva Melo começar a falar dos jacarandás nas ruas de
Lisboa.