E vou trabalhar para uma casa no Areeiro, onde estão
agora As Chaves do Areeiro, que fazia uns acessórios para automóveis. Como
tinha muito jeito de mãos puseram-me a fazer em gesso uns moldes aerodinâmicos,
cinematográficos. Ah, porque a minha cultura começa a ser cinematográfica. Tive
tantos dias de expulsão e castigo no liceu que passava o tempo a ir para o
Paris ou para o Jardim Cinema ver filmes. Até entrei para o Cineclube Imagem,
que era vermelho, e tinha lá dentro o Vasco Granja, o Henrique Espírito-Santo,
o José Fonseca e Costa. E houve uma altura, até, em que a PIDE prendeu a
direcção toda do Cineclube Imagem.
Foi para mim uma autêntica escola, não só de cinema, mas também daquilo em que o cinema, como qualquer outra das artes, deve ter a sua função política. Isto em tempos já muito politizados. Por leituras, e depois pelo cinema, e por estes contactos, comecei a ser aquilo a que hoje se chama uma pessoa de esquerda.
Sem nunca ter pertencido ao PCP, não deixei de ser aliciado pelo PCP, e de qualquer modo era um ponto de referência, sempre. E nessas relações no decorrer da vida, nas Áfricas, quando regresso, a dirigir a Ulisseia, depois no etc do Fundão, no “Diário de Lisboa”, é natural que tivesse sofrido, nomeadamente no “Diário de Lisboa”, pressões que não vinham apenas da censura.
Muitas vezes voto no PCP e não é por causa do PCP, é por causa de mim. O que tenho a ver com o PCP? Nada. Gosto de ir votar porque a junta de freguesia é ali na Rua da Esperança, e vota-se ao domingo, e ao domingo aquilo é uma aldeia. Até os cavalheiros podem aparecer de chapéu, porque é quase tudo emigrantes, de Ovar, daqui e dacolá. Põem os seus melhores fatinhos, as esposas ou viúvas também, e é-me ternurento ver como aquela gente vai tão respeitosamente votar. Então, eu gosto de ver aquilo e também vou.Isso explica por que vai votar....
Como vê, não é por causa da “democracia”.
Mas porque é que vota no PCP?
Sou totalmente fiel à minha condição. Não tenho qualquer ilusão sobre de onde venho, como fui sendo e agindo. E sou de tal modo fiel a isso e a convicções iniciais nunca perdidas, que posso não me interessar em particular pelo partido comunista, mas por certas ideias comunistas, mesmo aquelas que passaram primeiro pelos Bakunines, ou pelos comunistas utópicos, como o Charles Fourier, com o falanstério. Eu venho dessa família de socialistas idealistas, onde meto um certo comunismo inicial que nada tem a ver com o Estaline, se calhar nem com a revolução de Outubro, sabendo-se que a revolução de Outubro começou por assassinar os de facto socialistas, revolucionários.
Está mais próximo da minha condição e formação enquanto pessoa.
Isto tem que ver com as ideias e a minha integração num sítio.
A minha Lisboa é muito pequena. Falo dela como o meu Triângulo das Bermudas. A casa da Rua das Madres onde vejo, enquanto os arquitectos deixarem, a mesma nesga de rio que via quando era miúdo. Parece que o Norman Foster vai dar cabo disto. O tal muro de betão que uma certa Lisboa pôde fazer parar há meia dúzia de anos vai ser transferido simplesmente para o outro lado da 24 de Julho.
Aquilo é uma pequena aldeia, eu de manhã vou tomar o meu cafezinho ao mais pequeno estabelecimento do mundo, que é a Geninha, tenho lá a voz do bairro, o mulherame todo, sei logo tudo. Aquele português que lá se fala é do melhor Gil Vicente, nomeadamente as mulheres, e eu delicio-me. Reencontro aí uma língua portuguesa que é escusado estar a ler a Agustina.
Depois faço a Calçada do Combro a pé e estou na Lisboa do Chiado romântico, onde sempre trabalhei.
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