Um Deus Passeando Pela Brisa da Tarde
Mário de Carvalho
Capa: José Serrão
Colecção: O Campo da
Palavra
Editorial Caminho,
Lisboa, Julho de 1995
Poucos vestígios
da razia são hoje aparentes. É difícil acreditar que estas casas foram
reconstruídas, após terem sido em grande extensão arrasadas. Quando esta
geração morrer não ficará memória das alterações que em dias de desgraça
ensanguentaram estas paragens. Restarão talvez anotações em livros que ninguém
lerá, até serem, eles próprios, destruídos, pela crueza do tempo e desatenção
dos homens, na melhor das hipóteses. Gozemos agora a paz, Mara e eu, e oxalá
não se repitam até ao fim das nossas vidas as depredações que tivemos a desdita
de presenciar. Ainda hoje olho com desconfiança quem venha do lado do Oceano.
Mas será das praias que acorrem todos os perigos?
Outro dia fiquei
estarrecido com o que vi. Era uma manhã agradável e fresca e, contra o meu
costume, dei comigo a afastar-me e a deambular pela margem do rio. Debruçado
sobre uma sebe, um escravozito apanhava amoras para uma sacola. Nem todas iriam
parar à minha mesa, decerto. Habitualmente fecho os olhos a estas pequenas
transgressões. As silvas dá-as a natureza, não exigem despesas nem cuidados.
Procurei apenas manter-me à distância para que a criança não me visse e não
ficasse inutilmente embaraçada. Em dado momento o garoto parou, sentou-se,
encheu a boca de amoras, puxou de uma cana e começou a desenhar na areia: uma
linha oblonga, outra linha oblonga com a mesma origem e que se afastava e
curvava para seccionar a primeira. Uma terceira linha a unir o remate das
outras duas. Um ponto: o olho do peixe.
«Quem te ensinou a
desenhar isso?» O rapaz sobressaltou-se e olhou-me aterrorizado, com a boca
entreaberta, arroxeada do suco das amoras. Nunca tinha visto o seu senhor tão
ao perto. Eu devia parecer-lhe terrível, ameaçador, como Júpiter Trovante
levantando-se de entre as nuvens. Ajoelhou-se e, com uma mão, estendeu-me
instintivamente um punhado de frutos, enquanto com a outra mão protegia a
cabeça: «Perdão, senhor!» Competia-lhe sentir-se em falta e não sabia bem de
quê. «Responde: Quem te ensinou esse desenho?» Que tinha sido um cardador que
passara por ali. «Dos meus?» Que não, meu senhor, que era homem forasteiro que
ia de longada, com destino certo. E o gaiato tremia, continha o choro com
esforço. A boca, tinta de amoras, dava-lhe um ar lastimoso, de mimo trágico.
«Vai-te!» Desapareceu, correndo, por entre as urzes, deixando um rasto de bagas
esbarrondadas pelo chão.
Pisoteei
meticulosamente o desenho com as minhas botinas cardadas, até restar apenas uma
lavra de areia remexida. Acto inútil. Não se apagam as realidades
destruindo-lhes os símbolos. Talvez muitas milhas além, no caminho do cardador
outros desenhos aparecessem e outras memórias fossem reavivadas. Estava extinta
a congregação do peixe? Eu procurava convencer-me de que sim. Que sabia eu?
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