Razões de Coração
Romance de paixões
acontecidas em Mafra ocupada pelos franceses
no ano de 1808
Álvaro Guerra
Colecção Mil Folhas
nº 16
Público, Maio de 2002
Manoel da Silveira Maldonado atira a manápula à taramela do portão e
invade o pátio a sacudir a chuva do capote. Grita pelo cocheiro e pelo preto
Tomé, numa pressa. O vozeirão sai-lhe de comando, como no tempo em que serviu
de alferes no exército do duque de Lafões, durante a famigerada guerra das laranjas. A noite está a
cair de repente em grossas cordas de água. Atarantado, o preto, e zonzo, o
cocheiro, saem dos fundos do pátio sob a carga da chuva, enquanto Manoel pede,
aos brados, que raios partam o dilúvio. Aos alvores, sege e carroção engatados,
carregar os baús do sótão. Agora não, ó cavalgaduras! Amanhã, depois de
aparelhar as carripanas. E vira as costas, galga as escadas de pedra que
desembocam sob o alpendre, à porta de casa, uma porta rija, de carvalho,
chapeada e pregueada com grandes cravos. Quase metálicas, as notas do
clavicórdio vêm da sala fustigar-lhes os nervos. Um minueto de Buccarini, coisa
passada de moda. Atira o capote ensopado para os braços de Josefa e estaca à
porta do salão, de pernas afastadas e polegares enfiados nas algibeiras do
colete. Musicata, hein! E os franceses à porta não tarda nada. Talvez agora nos
aproveite a prática do seu francês com essa dos anti-Cristo!
Mariana suspende as mãos sobre o teclado, enfrenta os olhos irados do irmão e, sem deles desviar os seus, ataca os primeiros acordes da Marselhesa.
Mariana suspende as mãos sobre o teclado, enfrenta os olhos irados do irmão e, sem deles desviar os seus, ataca os primeiros acordes da Marselhesa.
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