Manhã Submersa
Vergílio Ferreira
Colecção Livros de
Bolso Europa América nº 21
Publicações
Europa-América, Lisboa, Dezembro de 1971
Na realidade, eu não tinha um projecto para a vida. Não sabia se seria
padre, não sabia se viria a sair do Seminário. Havia mesmo agora em mim um
confuso novelo de sensações atravessadas de sonhos, de breves sobressaltos. Era
a aldeia distante, o peso volumoso das horas, a súbita e incrível lembrança sem
razão dos seios da Carolina ou da face branca da Mariazinha. Repentinamente,
acontecia-me acordar no meio da noite com a boca amarga, um calor húmido na
concha das minhas mãos, um terror esgazeado de asco e de avidez. Outras vezes,
a meio do estudo, subia-me devagar pelo ventre, como uma mão, uma onda tépida e
inesperada. Eu ficava perturbado, trémulo de desassossego, ou caído
profundamente para uma larga cisterna muda. Então cerrava lentamente os meus
olhos e aceitava, sem um gesto de defesa, que me pudessem matar.
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