domingo, 30 de setembro de 2018

OLHAR AS CAPAS


Manhã Submersa

Vergílio Ferreira
Colecção Livros de Bolso Europa América nº 21
Publicações Europa-América, Lisboa, Dezembro de 1971

Na realidade, eu não tinha um projecto para a vida. Não sabia se seria padre, não sabia se viria a sair do Seminário. Havia mesmo agora em mim um confuso novelo de sensações atravessadas de sonhos, de breves sobressaltos. Era a aldeia distante, o peso volumoso das horas, a súbita e incrível lembrança sem razão dos seios da Carolina ou da face branca da Mariazinha. Repentinamente, acontecia-me acordar no meio da noite com a boca amarga, um calor húmido na concha das minhas mãos, um terror esgazeado de asco e de avidez. Outras vezes, a meio do estudo, subia-me devagar pelo ventre, como uma mão, uma onda tépida e inesperada. Eu ficava perturbado, trémulo de desassossego, ou caído profundamente para uma larga cisterna muda. Então cerrava lentamente os meus olhos e aceitava, sem um gesto de defesa, que me pudessem matar.

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