Mário de Carvalho é
um escritor muito cá de casa.
Dei com este
admirável texto que publicou no Facebook e que encontrei no blog Aventar.
Mário de Carvalho
nasceu em Setembro de 1944, eu em Março de 1945.
Morava na Rua das Enfermeiras
da Grande Guerra, eu na Rua Mestre António Martins, ambas para os lados da
Penha de França.
Andámos no Liceu Gil
Vicente, a caminho sentíamos o delicioso cheiro, a chocolate, da Fábrica
Favorita, ali a Sapadores, frequentámos as matinés do Cine-Oriente mas nunca
nos encontrámos.
Talvez um dia.
«Era que trocássemos umas ideias sobre o assunto.»
«Eu nunca fui obrigado a fazer a saudação fascista aos «meus
superiores». Eu nunca andei fardado com um uniforme verde e amarelo de S de
Salazar à cintura. Eu nunca marchei, em ordem unida, aos sábados, com outros
miúdos, no meio de cânticos e brados militares. Eu nunca vi os colegas mais
velhos serem levados para a «mílícia», para fazerem manejo de arma com a
Mauser. Eu nunca fui arregimentado, dias e dias, para gigantescos festivais de
ginástica no Estádio do Jamor. Eu nunca assisti ao histerismo generalizado em
torno do «Senhor Presidente do Conselho», nem ao servilismo sabujo para com o
«venerando Chefe do Estado». Eu nunca fui sujeito ao culto do «Chefe», «chefe
de turma», «chefe de quina», «chefe dos contínuos», «chefe da esquadra», «chefe
do Estado». Eu nunca fui obrigado a ouvir discursos sobre «Deus, Pátria e
Família». Eu nunca ouvi gritar: «quem manda? Salazar, Salazar, Salazar». Eu
nunca tive manuais escolares que ironizassem com «os pretos» e com «as raças
inferiores». Eu nunca me apercebi do «dia da Raça». Eu nunca ouvi louvar a
acção dos «Viriatos» na Guerra de Espanha. Eu nunca fui obrigado a ler textos
escolares que convidassem à resignação, à pobreza e ao conformismo; Eu nunca
fui pressionado para me converter ao catolicismo e me «baptizar». Eu nunca fui
em grupos levar géneros a pobres, politicamente seleccionados, porque era mesmo
assim. Eu nunca assisti á miséria fétida dos hospitais dos indigentes. Eu nunca
vi os meus pais inquietados e em susto. Eu nunca tive que esconder livros e
papéis em casa de vizinhos ou amigos. Eu nunca assisti à apreensão dos livros
do meu pai. Eu nunca soube de uma cadeia escura chamada o Aljube em que os
presos eram sepultados vivos em «curros». Eu nunca convivi com alguém que
tivesse penado no Tarrafal. Eu nunca soube de gente pobre espancada,
vilipendiada e perseguida e nunca vi gente simples do campo a ser humilhada e
insultada. Eu nunca vi o meu pai preso e nunca fui impedido de o visitar
durante dias a fio enquanto ele estava «no sono». Eu nunca fui interpelado e
ameaçado por guardas quando olhava, de fora, para as grades da cadeia. Eu nunca
fui capturado no castelo de S. Jorge por um legionário, por estar a falar
inglês sem ser «intréprete oficial». Eu nunca fui conduzido à força a uma cave,
no mesmo castelo, em que havia fardas verdes e cães pastores alemães. Eu nunca
vi homens e mulheres a sofrer na cadeia da vila por não quererem trabalhar de
sol a sol. Eu nunca soube de alentejanos presos, às ranchadas, por se
encontrarem a cantar na rua. Eu nunca assisti a umas eleições falsificadas,
nunca vi uma manifestação espontânea ser reprimida por cavalaria à sabrada; eu
nunca senti os tiros a chicotearem pelas paredes de Lisboa, em Alfama, durante
o Primeiro de Maio. Eu nunca assisti a um comício interrompido, um colóquio
desconvocado, uma sessão de cinema proibida. Eu nunca presenciei a invasão dum
cineclube de jovens com roubo de ficheiros, gente ameaçada, cartazes
arrancados. Eu nunca soube do assalto à Sociedade Portuguesa de Escritores, da
prisão dos seus dirigentes. Eu nunca soube da lei do silêncio e da damnatio
memoriae que impendia sobre os mais prestigiados intelectuais do meu país. Eu
nunca fui confrontado quotidianamente com propaganda do estado corporativo e
nunca tive de sofrer as campanhas de mentalização de locutores, escribas e
comentadores da Rádio e da Televisão. Eu nunca me dei conta de que houvesse
censura à imprensa e livros proibidos. Eu nunca ouvi dizer que tinha havido
gente assassinada nas ruas, nos caminhos e nas cadeias. Eu nunca baixei a voz
num café, para falar com o companheiro do lado. Eu nunca tive de me preocupar
com aquele homem encostado ali à esquina. Eu nunca sofri nenhuma carga policial
por reclamar «autonomia» universitária. Eu nunca vi amigos e colegas de cabeça
aberta pelas coronhas policiais. Eu nunca fui levado pela polícia, num
autocarro, para o Governo Civil de Lisboa por indicação de um reitor celerado.
Eu nunca vi o meu pai ser julgado por um tribunal de três juízes carrascos por
fazer parte do «organismo das cooperativas», do PCP, com alguns comerciantes da
Baixa, contabilistas, vendedores e outros tenebrosos subversivos. Eu nunca fui
sistematicamente seguido por brigadas que utilizavam um certo Volkswagen verde.
Eu nunca tive o meu telefone vigiado. Eu nunca fui impedido de ler o que me
apetecia, falar quando me ocorria, ver os filmes e as peças de teatro que
queria. Eu nunca fui proibido de viajar para o estrangeiro. Eu nunca fui
expressamente bloqueado em concursos de acesso à função pública. Eu nunca vi a
minha vida devassada, nem a minha correspondência apreendida. Eu nunca fui
precedido pela informação de que não «oferecia garantias de colaborar na
realização dos fins superiores do Estado». Eu nunca fui objecto de comunicações
«a bem da nação». Eu nunca fui preso. Eu nunca tive o serviço militar
ilegalmente interrompido por uma polícia civil. Eu nunca fui julgado e
condenado a dois anos de cadeia por actividades que seriam perfeitamente
quotidianas e normais noutro país qualquer; Eu nunca estive onze dias e onze
noites, alternados, impedido de dormir, e a ser quotidianamente insultado e
ameaçado. Eu nunca tive alucinações, nunca tombei de cansaço. Eu nunca conheci
as prisões de Caxias e de Peniche. Eu nunca me dei conta, aí, de alguém que
tivesse sido perseguido, espancado e privado do sono. Eu nunca estive destinado
à Companhia Disciplinar de Penamacor. Eu nunca tive de fugir clandestinamente
do país. Eu nunca vivi num regime de partido único. Eu nunca tive a infelicidade
de conhecer o fascismo.»
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