A Morte de Carlos Gardel
António Lobo Antunes
Publicações Dom
Quixote, Lisboa, Março de 1994
e por um segundo dei fé do branco dos seus olhos, dei fé dos seus
dentes um disco do invólucro, colocou-o no parto, sentou-se no sofá e a voz de
Carlos Gardel principiou a cantar
baixinho, não como quando a minha mãe e o meu pai viviam juntos e os violinos e
o acordeão deviam alcançar a Venda Nove e a Paiã, e a minha mãe desligava a
música a prevenir, transtornada
- Não aguento mais tangos, vou exigir o divórcio
e durante anos o meu pai, para mim não era o meu pai, era uma voz que
saía dos altifalantes e anulava tudo, apagava tudo, destruía tudo, uma voz que
se calava e recomeçava e se calava de novo, o meu pai não era um homem e um
jornal era um piano a lamentar-se que regressava agora, num murmúrio, ao
apartamento junto ao rio e às máscaras sem olhos nem boca que falavam como o
médico, a enfermeira e a minha tia me falam, mesmo se não é comigo que falam,
ao conversarem sobre a minha doença e a minha morte, porque não é acerca de mim
que conversam é de uma pessoa que conhecem e não sei quem seja, eu sei quem sou
mas ignoro quem morre e por ignorar quem vai morrer não morro
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