sexta-feira, 28 de setembro de 2018

OLHAR AS CAPAS



A Morte de Carlos Gardel

António Lobo Antunes
Publicações Dom Quixote, Lisboa, Março de 1994

e por um segundo dei fé do branco dos seus olhos, dei fé dos seus dentes um disco do invólucro, colocou-o no parto, sentou-se no sofá e a voz de Carlos Gardel  principiou a cantar baixinho, não como quando a minha mãe e o meu pai viviam juntos e os violinos e o acordeão deviam alcançar a Venda Nove e a Paiã, e a minha mãe desligava a música a prevenir, transtornada
- Não aguento mais tangos, vou exigir o divórcio
e durante anos o meu pai, para mim não era o meu pai, era uma voz que saía dos altifalantes e anulava tudo, apagava tudo, destruía tudo, uma voz que se calava e recomeçava e se calava de novo, o meu pai não era um homem e um jornal era um piano a lamentar-se que regressava agora, num murmúrio, ao apartamento junto ao rio e às máscaras sem olhos nem boca que falavam como o médico, a enfermeira e a minha tia me falam, mesmo se não é comigo que falam, ao conversarem sobre a minha doença e a minha morte, porque não é acerca de mim que conversam é de uma pessoa que conhecem e não sei quem seja, eu sei quem sou mas ignoro quem morre e por ignorar quem vai morrer não morro

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