E aquela rapariga simpática, fina, a do braço paralítico, você chegou a
dizer-me como ela se chamava, Marcenda, É um gerúndio bonito, tem-na visto,
Encontrei-a da última vez que esteve em Lisboa, o mês passado, Você gosta dela,
Não sei, E da Lídia, gosta, é diferente, Mas gosta, ou não gosta, Até agora o
corpo não se me negou, E isso que é que prova, Nada, pelo menos de amores, mas
deixe de fazer perguntas sobre a minha intimidade, diga-me antes por que é que
não tornou a aparecer, Usando uma só palavra, por enfado, De mim, Sim, também
de si, não por ser você, mas por estar desse lado, Que lado, O dos vivos, é
difícil a um vivo entender os mortos, Julgo que não será menos difícil a um
morto entender os vivos, O morto tem a vantagem de já ter sido vivo, conhece
todas as coisas deste mundo e desse mundo, mas os vivos são incapazes de
aprender a coisa fundamental e tirar proveito dela, Qual, Que se morre, Nós,
vivos, sabemos que morreremos, Não sabem, ninguém sabe, como eu também não
sabia quando vivi, o que nós sabemos, isso sim, é que os outros morrem, Para
filosofia, parece-me insignificante, Claro que é insignificante, você nem sonha
até que ponto tudo é insignificante visto do lado da morte, Mas eu estou do
lado da vida, Então deve saber que coisas, desse lado, são significantes, se as
há, Estar vivo é significante, Meu caro Reis, cuidado com as palavras, viva
está a sua Lídia, viva está a sua Marcenda, e você não sabe nada delas, nem o
saberia mesmo que elas tentassem dizer-lho, o muro que separa os vivos uns dos
outros não é menos opaco que o que separa os vivos dos mortos, Para quem assim
pense, a morte, afinal, deve ser um alívio, Não é, porque a morte é uma espécie
de consciência, um juiz que julga tudo, a si mesmo e à vida, Meu caro Fernando,
cuidado com as palavras, você arrisca-se muito, Se não dissermos as palavras
todas, mesmo absurdamente, nunca diremos as necessárias, E você, já as sabe, Só
agora comecei a ser absurdo, Um dia você escreveu Neófito, não há morte, Estava
enganado, há morte, Di-lo agora porque está morto, Não, digo-o porque estive
vivo, digo-o, sobretudo, porque nunca mais voltarei a estar vivo, se você é
capaz de imaginar o que isto significa, não voltar a estar vivo, Assim Pero
Grulho ensinaria, Nunca tivemos melhor filósofo.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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