Olhe que nós, por cá, também não vamos nada mal em pontos de confusão
entre o divino e o humano, parece até que voltámos aos deuses da antiguidade,
Os seus, Eu só aproveitei deles um resto, as palavras que os diziam, Explique
melhor essa tal divina e humana confusão, É que, segundo a declaração solene de
um arcebispo de Mitilene, Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Está aí
escrito, Com todas as letras, Que Portugal é Cristo e Cristo é Portugal, Exactamente.
Fernando Pessoa pensou alguns instantes, depois largou a rir, um riso seco,
tossicado, nada bom de ouvir, Ai esta terra, ai esta gente, e não pôde
continuar, havia agora lágrimas verdadeiras nos seus olhos, Ai esta terra,
repetiu, e não parava de rir, Eu a julgar que tinha ido longe de mais no
atrevimento quando na Mensagem chamei santo a Portugal, lá está, São Portugal,
e vem um príncipe da Igreja, com a sua arquiepiscopal autoridade, e proclama
que Portugal é Cristo, E Cristo é Portugal, não esqueça, Sendo assim,
precisamos de saber, urgentemente, que virgem nos pariu, que
diabo nos tentou, que judas nos traiu, que pregos nos crucificaram, que túmulo
nos esconde, que ressurreição nos espera, Esqueceu-se dos milagres, Quer você
milagre maior que este simples facto de existirmos, de continuarmos a existir,
não falo por mim, claro, Pelo andar que levamos, não sei até quando e onde
existiremos, Em todo o caso, você tem de reconhecer que estamos muito à frente
da Alemanha, aqui é a própria palavra da Igreja a estabelecer, mais do que
parentescos, identificações, nem sequer precisávamos de receber o Salazar de
presente, somos nós o próprio Cristo, Você não devia ter morrido tão novo, meu
caro Fernando, foi uma pena, agora é que Portugal vai cumprir-se, Assim
acreditemos nós e o mundo no arcebispo, O que ninguém pode é dizer que não
estamos a fazer tudo para alcançar a felicidade, quer ouvir agora o que o
cardeal Cerejeira disse aos seminaristas, Não sei se serei capaz de aguentar o
choque, Você não é seminarista, Mais uma razão, mas seja o que Deus quiser,
leia lá, Sede angelicamente puros, eucaristicamente fervorosos e ardentemente
zelosos, Ele disse essas palavras, assim emparelhadas, Disse, Só me resta
morrer, Já está morto, Pobre de mim, nem isso me resta. Ricardo Reis encheu
outra chávena, A beber café dessa maneira, você não vai dormir, avisou Fernando
Pessoa, Deixe, uma noite de insónia nunca fez mal a ninguém, e às vezes ajuda.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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