terça-feira, 25 de setembro de 2018

RECOSTOU-SE A LER O JORNAL


Fosse por efeito da grave conversação ou por abuso do café, Ricardo Reis não dormiu bem. Acordou algumas vezes, no sono parecera-lhe ouvir bater o seu próprio coração dentro da almofada onde descansava a cabeça, quando acordava deitava-se de costas para deixar de o ouvir, e depois, aos poucos, tornava a senti-lo, deste lado do peito, fechado na gaiola das costelas, então vinham lhe à lembrança as autópsias a que assistira, e via o seu coração vivo, pulsando angustiadamente como se cada movimento fosse o derradeiro, depois o sono voltava, difícil, enfim profundo quando a manhã já clareava. Ainda dormia, veio o ardina atirar-lhe o jornal às vidraças, não se levantou para abrir a janela, em casos tais o vendedor sobe a escada, deixa as notícias sobre o capacho, estas novas por cima, que outras, doutro dia, mais antigas, serviam agora para aparar o terriço raspado pelo esparto na sola dos sapatos, sic transit notitia mundi, abençoado seja quem inventou o latim. Ao lado, no recanto do vão da porta, está a leiteirinha com a metade de meio litro diária, pendurado no puxador o saquitel do pão, Lídia trará tudo isto para dentro, quando chegar, já depois das onze, que hoje é dia da sua folga, mas não conseguiu vir mais cedo, à última hora ainda Salvador a mandou limpar e arrumar três quartos, gerente abusador. Não se demorará muito, tem de ir ver a sua abandonada mãe, saber novidades do irmão que foi ao Porto navegando no Afonso de Albuquerque e voltou, Ricardo Reis ouviu-a entrar, chamou com voz ensonada, e ela apareceu entreportas, ainda com a chave, o pão, o leite e o jornal nas mãos, disse, Bom dia, senhor doutor, ele respondeu, Bom dia, Lídia, foi assim que se trataram no primeiro dia e assim irão continuar, nunca ela será capaz de dizer, Bom dia, Ricardo, mesmo que ele lho pedisse, o que até hoje não fez e não fará, é suficiente confiança recebê-la neste preparo, despenteado, de barba crescida e hálito nocturno. Lídia foi à cozinha deixar o leite e o pão, voltou com o jornal, depois saiu para preparar o pequeno-almoço, enquanto Ricardo Reis desdobrava e abria as folhas, segurando-as cuidadosamente pelas margens brancas para não manchar os dedos, levantando-as para não sujar a dobra do lençol, são pequenos gestos maníacos que conscientemente cultiva como quem se rodeia de balizas, de pontos de referência, de fronteiras. Ao abrir o jornal lembrou-se do movimento idêntico que fizera algumas horas antes, e outra vez se lhe figurou que Fernando Pessoa estivera ali há muito mais tempo, como se memória tão recente fosse, afinal, uma memória antiquíssima, de dias em que Fernando Pessoa, por ter partido os óculos, lhe pedira, Ó Reis, leia-me aí as notícias, as mais importantes, As da guerra, Não, essas não vale a pena, leio-as amanhã, que são iguais, estava-se em Junho de mil novecentos e dezasseis, e Ricardo Reis escrevera, há poucos dias, a mais extensa das suas odes, passadas e futuras, aquela que começa, Ouvi contar que outrora, quando a Pérsia. Da cozinha veio O cheiro bom do pão torrado, ouviam-se pequenos rumores de louça, depois os passos de Lídia no corredor, traz, serena desta vez, o tabuleiro, é o mesmo gesto profissional, só não precisa de bater à porta, que está aberta. A este hóspede de tantas semanas pode-se perguntar sem abusar da confiança, Então hoje deixou-se dormir, Não passei bem a noite, uma insónia dos diabos, Se calhar andou por fora, deitou-se tarde, Antes fosse, ainda não era meia-noite quando me deitei, nem saí de casa, acreditará Lídia, não acreditará, nós sabemos que Ricardo Reis diz a verdade. O tabuleiro está sobre os joelhos do hóspede do duzentos e um, a criada deita o café e o leite, aproxima as torradas, a compota, rectifica a posição do guardanapo, e então é que diz, Hoje não posso ficar muito tempo, dou aí uma arrumação e depois vou-me, quero ver a minha mãe, ela já se queixa de que eu nunca apareço, ou passo de fugida, até me perguntou se arranjei namorado e se é para casar. Ricardo Reis sorri, contrafeito, não tem nada para responder, certamente não esperaríamos que dissesse, Namorado já tu aqui tens, e quanto ao casamento, ainda bem que falas nisso, um destes dias teremos de falar no nosso futuro, limita-se a sorrir, a olhar para ela com uma expressão subitamente paternal. Lídia retirou-se para a cozinha, não levava qualquer resposta, se a esperara, saíram-lhe sem querer aquelas palavras da boca, nunca a mãe lhe falara em noivos e namorados. Ricardo Reis acabou de comer, empurrou o tabuleiro para os pés da cama, recostou-se a ler o jornal.


Legenda: fotografia de Manuel de Jesus Matias em Arquivo Municipal de Lisboa

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