segunda-feira, 31 de dezembro de 2018
OS JORNAIS, O PEIXE E A VERDADE
Dizia-se antigamente que as notícias e as crónicas de jornais, após
serem lidas, só serviam para embrulhar o peixe ou as castanhas assadas. O
advérbio "só" acentuava a vacuidade do gesto, a pretensão do autor e
o pragmatismo do leitor. Passadas algumas décadas talvez devêssemos trocar o
"só" por um "ainda". Sim, era possível reutilizar as
notícias, dar-lhes um propósito e um fim digno e utilitário.
Talvez nos embrulhemos
a nós, protegendo não as mãos mas as cabeças de tanto ruído, de tantos boatos,
de tanta manipulação produzida por fontes incertas ou mal-intencionadas.
Uma pergunta segue a constatação: Para que servem os jornais de hoje?
Que fim lhes havemos de dar se, muitas vezes, nem matéria são, capazes de
isolar o calor ou de absorver a gordura que não queremos nas mãos? Que
poderemos embrulhar nos muitos bits e bytes que nos chegam a todo o
momento?
Talvez nos embrulhemos a nós, protegendo não as mãos mas as cabeças de
tanto ruído, de tantos boatos, de tanta manipulação produzida por fontes
incertas ou mal-intencionadas. Os jornais continuam a embrulhar ideias, factos
e, de vez em quando, um pouco de poesia. É pouco? Não, não é nada pouco.
Nuno Camarneiro no Diário de Notícias, on-line
OLHAR AS CAPAS
Por Saramago
Anabela Mota Ribeiro
Posfácio:: Fernando
Gómez Aguilera
Capa: Filipe Silva
Fotografias Estelle
Valente
Temas e Debates,
Lisboa, Novembro de 2018
Se tenho algum motivo de orgulho, e creio ter direito a tê-lo, é poder
dizer que a mim não me calam. Ninguém me cala.
A Fundação José
Saramago revela que este livro é uma homenagem ao escritor por altura
do vigésimo aniversário do Nobel da Literatura.
Inclui entrevistas a
José Saramago e a Pilar del Río – entrevistas que dizem respeito aos
três últimos livros: As Pequenas Memórias, A Viagem do Elefante e Caim – bem
como textos sobre a casa de Lanzarote e uma viagem ao México com Saramago.
Ilustrado com cerca de 65 fotografias de Estelle Valente, originais, que
percorrem alguns dos caminhos do escritor, tanto em Lanzarote como em Lisboa.
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José Saramago Livros,
Olhar as Capas
ADEUS ANO VELHO
Mais logo,
despedimo-nos de mais um ano velho.
A Sophia de Mello
Breyner Andresen não sabia por que as pessoas celebravam a passagem do ano. O ano está sempre a mudar, dizia.
Novo ano.
O que for será, como
naquela velha canção da Doris Day.
Ou a Criação do Mundo que é um lindíssimo
poema da Maria do Rosário Pedreira:
«Olhou as mãos em concha e viu arredondar-se
um sonho dentro delas – um mundo
que ninguém podia adivinhar, pois dele
fariam também parte os magos e os profetas.
Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como sementes,
para que então servissem unicamente de sombras
e prolongassem a memória das coisas por vir. Foi assim
que inventou a luz e separou um dia do seguinte.
Depois afastou o céu daquilo que viria a ser o mar,
como quem divide um lenço azul em dois e limpa
as lágrimas apenas a metade. No meio, deixou que
crescesse tudo quanto do chão quisesse escapar-se
para traçar a primeira geografia dos caminhos. E assim
descobriu a cor e encheu a sua paleta de animais
que rasgariam os céus, cruzariam os oceanos e
resolveriam as entranhas da terra na estação
das chuvas. Por fim, semeou pequenas clareiras
nas florestas, pedras nas vertentes das cordilheiras,
cristais de neve no contorno dos lagos, estrelas cadentes
na vizinhança do desespero e rios serpenteantes
entre as searas louras, mordidas por um sol que lhe caiu
quase sem querer dos dedos, mas lhes aproveitou o calor
E, apesar da alegria que experimentou, sentiu que o seu
mundo era tão frágil que, se desviasse os olhos, tudo acabaria
por regressar ao pó, às trevas e ao verbo. Só por isso criou alguém
que também o visse e lhe dissesse todos os dias como era belo.»
Maria do Rosário Pedreira em O Canto doVento nos Ciprestes
um sonho dentro delas – um mundo
que ninguém podia adivinhar, pois dele
fariam também parte os magos e os profetas.
Abriu-as devagar e deixou cair as trevas como sementes,
para que então servissem unicamente de sombras
e prolongassem a memória das coisas por vir. Foi assim
que inventou a luz e separou um dia do seguinte.
Depois afastou o céu daquilo que viria a ser o mar,
como quem divide um lenço azul em dois e limpa
as lágrimas apenas a metade. No meio, deixou que
crescesse tudo quanto do chão quisesse escapar-se
para traçar a primeira geografia dos caminhos. E assim
descobriu a cor e encheu a sua paleta de animais
que rasgariam os céus, cruzariam os oceanos e
resolveriam as entranhas da terra na estação
das chuvas. Por fim, semeou pequenas clareiras
nas florestas, pedras nas vertentes das cordilheiras,
cristais de neve no contorno dos lagos, estrelas cadentes
na vizinhança do desespero e rios serpenteantes
entre as searas louras, mordidas por um sol que lhe caiu
quase sem querer dos dedos, mas lhes aproveitou o calor
E, apesar da alegria que experimentou, sentiu que o seu
mundo era tão frágil que, se desviasse os olhos, tudo acabaria
por regressar ao pó, às trevas e ao verbo. Só por isso criou alguém
que também o visse e lhe dissesse todos os dias como era belo.»
Maria do Rosário Pedreira em O Canto doVento nos Ciprestes
domingo, 30 de dezembro de 2018
POSTAIS SEM SELO
Enganas-te, nunca
não é o contrário de tarde, o contrário de tarde é demasiado tarde,
respondeu-lhe Caim.
José Saramago em Caim
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José Saramago,
Postais Sem Selo
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Quisemos ser enganados, foi o que foi.
O pior é que tudo isto se passou com pessoas que tinham hábitos de frequentar livrarias e discotecas.
Só que, como diz a frase histórica, não se pode enganar toda a gente todo o tempo.
Foi quando, um dia, deu com ele a perguntar-se: A FNAC, em algum dia, foi uma livraria, uma loja de venda de discos? Não terá sido antes um olhar ingénuo e distraído sobre a novidade que nos levou a pensar que…?
Enquanto foi novidade, a FNAC agradou pela diversidade, alguma competência.
O pior é que tudo isto se passou com pessoas que tinham hábitos de frequentar livrarias e discotecas.
Só que, como diz a frase histórica, não se pode enganar toda a gente todo o tempo.
Foi quando, um dia, deu com ele a perguntar-se: A FNAC, em algum dia, foi uma livraria, uma loja de venda de discos? Não terá sido antes um olhar ingénuo e distraído sobre a novidade que nos levou a pensar que…?
Enquanto foi novidade, a FNAC agradou pela diversidade, alguma competência.
Depois começou lentamente a derrapar até chegar à javardice que hoje é.
Há 12 anos, quando apareceu em Portugal, conseguiu arrasar literalmente com toda a concorrência nacional. Qual árvore de borracha, secou tudo em volta.
Lembram-se das grandes, médias e pequenas livrarias de Lisboa, das lojas Valentim de Carvalho, Loja da Música, Discoteca Roma e outras? Até a Virgin!
Deram cabo de tudo e hoje a FNAC mais não é que uma loja de venda de equipamentos informáticos, relógios, outras tretas e onde reina a ignorância, a incompetência, a má educação.
Por ele, há muito, mas mesmo muito, que deixou de pôr os pés na FNAC.
Agora conta a história macabra que se passou, na FNAC do Chiado, com um amigo.
O amigo escolheu uns livros, uns DVDs. Dirigiu-se depois à bilheteira para comprar bilhetes para o concerto do James Taylor e, como já fizera em anteriores ocasiões, pagaria tudo no mesmo balcão: bilhetes, livros e DVDs.
Era a hora de almoço e a situação estava um pouco para o complicado e para o lento. O amigo resolveu passar noutra ocasião. E saiu.
Esquecera que debaixo do braço tinha os livros e os DVDs, que não pagara, e os censores dispararam o alerta. Entrara em simples transgressão.
De imediato se lhe dirigiu o segurança, indagou o que tinha para indagar, o amigo explicou a situação e foi de imediato pagar os livros e os DVDs.
Aguardava a sua vez para pagar, quando o segurança voltou a dirigir-se-lhe dizendo que, após o pagamento, teria que passar, para alguns esclarecimentos, pela sala de segurança.
O que se passou na sala de segurança? O que pretendiam?
Puro achincalhamento, o sindroma dos pequeninos poderes que se sentem no direito de chatear quem lhe apetece.
Uma autêntica conversa da treta que aqui tem short version.
Aguardavam-no três capangas e uma capanga. Começaram com um sermão beato que estas coisas não são bonitas, não são decentes. O amigo voltou a explicar o sucedido e, cansado já, saiu-lhe aquele humano desabafo se eles o achavam com cara de andar a gamar DVS e livros.
Aí a capanga, com um sorriso de escárnio, bolsou: “ah se eu lhe contasse o que apanhamos por aqui. Até juízes de direito!”.
Aos poucos a paciência do amigo estava nos limites e chegou a passar-lhe pela cabeça espetar uma cabeçada no céu-da-boca daquela gentalha. Campainhas soaram: pior a emenda que o soneto, estava em digressão, não era tempo para se armar em Kung Fu.
Se a FNAC é má, a empresa de segurança que lhe presta serviço, acompanha o nível. Estão bem uns para os outros.
Findo o achincalhamento - volta a recordar que isto é uma short version - o amigo dirigiu-se de imediato ao “apoio ao cliente” para apresentar reclamação e desistir do cartão FNAC.
Deram-lhe um papel e o amigo disse ao empregado que na folha não constava o tipo de reclamação que queria fazer.
O empregado enfastiado: “Escreva por aí qualquer coisa".
Contou a história e, candidamente, ficou a aguardar um telefonema, uma carta da FNAC, não só para um formal pedido de desculpas, mas algo mais, aquilo que a relação empresas/clientes exige.
Nada! Esta história passou-se no Verão passado.
Que terá acontecido?
O empregado, para defender a empresa de segurança, não fez avançar a reclamação para quem de direito.
A reclamação foi lida por quem de direito que entendeu que a história era a velha cena dos habituais gamadores de mercadorias e não esteve para mais chatices. O facto de se tratar de um bom cliente, centenas de euros por mês, milhares por ano, poderia ser até um cliente de um euro, não foi suficiente para qualquer diligência.
Em suma a FNAC, pura e simplesmente, borrifa-se nos seus clientes.
O ar arrogante de quem se sente, confortável, no topo do negócio e não necessita da ralé para nada.
Possivelmente nunca irão compreender a porcaria de empresa que são.
Talvez aprendessem se ninguém lá pusesse os pés…
Ou então, como diz o russo, no café do bairro, entre a bica e o bagaço: “só à chapada!...”.
Colaboração de Gin-Tonic
Há 12 anos, quando apareceu em Portugal, conseguiu arrasar literalmente com toda a concorrência nacional. Qual árvore de borracha, secou tudo em volta.
Lembram-se das grandes, médias e pequenas livrarias de Lisboa, das lojas Valentim de Carvalho, Loja da Música, Discoteca Roma e outras? Até a Virgin!
Deram cabo de tudo e hoje a FNAC mais não é que uma loja de venda de equipamentos informáticos, relógios, outras tretas e onde reina a ignorância, a incompetência, a má educação.
Por ele, há muito, mas mesmo muito, que deixou de pôr os pés na FNAC.
Agora conta a história macabra que se passou, na FNAC do Chiado, com um amigo.
O amigo escolheu uns livros, uns DVDs. Dirigiu-se depois à bilheteira para comprar bilhetes para o concerto do James Taylor e, como já fizera em anteriores ocasiões, pagaria tudo no mesmo balcão: bilhetes, livros e DVDs.
Era a hora de almoço e a situação estava um pouco para o complicado e para o lento. O amigo resolveu passar noutra ocasião. E saiu.
Esquecera que debaixo do braço tinha os livros e os DVDs, que não pagara, e os censores dispararam o alerta. Entrara em simples transgressão.
De imediato se lhe dirigiu o segurança, indagou o que tinha para indagar, o amigo explicou a situação e foi de imediato pagar os livros e os DVDs.
Aguardava a sua vez para pagar, quando o segurança voltou a dirigir-se-lhe dizendo que, após o pagamento, teria que passar, para alguns esclarecimentos, pela sala de segurança.
O que se passou na sala de segurança? O que pretendiam?
Puro achincalhamento, o sindroma dos pequeninos poderes que se sentem no direito de chatear quem lhe apetece.
Uma autêntica conversa da treta que aqui tem short version.
Aguardavam-no três capangas e uma capanga. Começaram com um sermão beato que estas coisas não são bonitas, não são decentes. O amigo voltou a explicar o sucedido e, cansado já, saiu-lhe aquele humano desabafo se eles o achavam com cara de andar a gamar DVS e livros.
Aí a capanga, com um sorriso de escárnio, bolsou: “ah se eu lhe contasse o que apanhamos por aqui. Até juízes de direito!”.
Aos poucos a paciência do amigo estava nos limites e chegou a passar-lhe pela cabeça espetar uma cabeçada no céu-da-boca daquela gentalha. Campainhas soaram: pior a emenda que o soneto, estava em digressão, não era tempo para se armar em Kung Fu.
Se a FNAC é má, a empresa de segurança que lhe presta serviço, acompanha o nível. Estão bem uns para os outros.
Findo o achincalhamento - volta a recordar que isto é uma short version - o amigo dirigiu-se de imediato ao “apoio ao cliente” para apresentar reclamação e desistir do cartão FNAC.
Deram-lhe um papel e o amigo disse ao empregado que na folha não constava o tipo de reclamação que queria fazer.
O empregado enfastiado: “Escreva por aí qualquer coisa".
Contou a história e, candidamente, ficou a aguardar um telefonema, uma carta da FNAC, não só para um formal pedido de desculpas, mas algo mais, aquilo que a relação empresas/clientes exige.
Nada! Esta história passou-se no Verão passado.
Que terá acontecido?
O empregado, para defender a empresa de segurança, não fez avançar a reclamação para quem de direito.
A reclamação foi lida por quem de direito que entendeu que a história era a velha cena dos habituais gamadores de mercadorias e não esteve para mais chatices. O facto de se tratar de um bom cliente, centenas de euros por mês, milhares por ano, poderia ser até um cliente de um euro, não foi suficiente para qualquer diligência.
Em suma a FNAC, pura e simplesmente, borrifa-se nos seus clientes.
O ar arrogante de quem se sente, confortável, no topo do negócio e não necessita da ralé para nada.
Possivelmente nunca irão compreender a porcaria de empresa que são.
Talvez aprendessem se ninguém lá pusesse os pés…
Ou então, como diz o russo, no café do bairro, entre a bica e o bagaço: “só à chapada!...”.
Colaboração de Gin-Tonic
Textos tirados daqui.
PEACE IN THE VALLEY
Já várias vezes o
tenho dito: não frequento a FNAC.
Motivos vários e
inultrapassáveis.
Hoje, por via de uma
troca de presente natalício, tive de lá ir.
Agoniado, muito
agoniado, mesmo.
Valeu ter encontrado
a uma esquina da sala de música clássica ter um escaparate com discos de vinil,
mais concretamente discos de Natal.
Valeu o sacrifício…
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Elvis Presley,
Natal Canções de
sábado, 29 de dezembro de 2018
sexta-feira, 28 de dezembro de 2018
quinta-feira, 27 de dezembro de 2018
quarta-feira, 26 de dezembro de 2018
OLHAR AS CAPAS
Entrevistas
1958-1978
Jorge de Sena
Selecção de Jorge
Fazenda Lourenço
Capa: João Botelho
Babel, Lisboa, Março
de 2013
Escrever, para mim, não é sacrifício: é um prazer. É também um acto
moral e social. Eu sempre achei que a criação literária é uma criação
comprometida, , ainda que a pessoa não esteja comprometida, digamos no sentido
partidário. Mas está comprometida com todo um ideal de justiça, de liberdade,
de visão social do mundo. Tudo isso representa um comprometimento sem o qual a
literatura acto moral e social. Tudo isso representa um comprometimento sem o
qual a literatura para mim não existe.
Da entrevista dada a
Baptista-Bastos e publicada no Diário
Popular de 30 de Setembro de 1976
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Baptista-Bastos,
João Botelho,
Jorge de Sena Livros,
Olhar as Capas
terça-feira, 25 de dezembro de 2018
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- Há quanto tempo tem estes livros, sr. Priam? – perguntou Ellery.
- Há… Há quanto tempo os comprei eu, Delia?
- Foi pouco depois do nosso casamento.
- Para enfeitar uma biblioteca são precisos livros, não é verdade?
Chamei um tipo. A quem mandei medir o comprimento total das prateleiras e
trazer-me depois os volumes necessários para as encher. «Quero o melhor em
tudo», disse eu ao homenzinho. Quando ele voltou com o carregamento de
cartapácios, atirei-lho à cara. «O melhor em tudo», foi o que lhe encomendei!
Disse-lhe eu. Leve essa pacotilha e mande-a encadernar com tudo quanto haja de
melhor no mercado – peles e o resto. Quero pagar, mas ficar bem servido. Senão,
de mim não leva um chavo!»
- A sua ordem foi cumprida na perfeição – comentou Ellery. – Todos
estes belos livros estão absolutamente intactos… Dir-se-ia mesmo que nunca
foram abertos.
- Abertos! Para estragar as capas! Eu mandei avaliar a minha colecção.
Vale uma fortuna! Proíbo, seja quem for, de folhear os meus livros!
- Nunca teve curiosidade de saber o que contavam alguns destes autores?
- Não tornei a ler um livro desde que saí da escola.
- Não tornei a ler um livro desde que saí da escola.
Ellery Queen em O Mistério da Arca de Noé
NOTÍCIA TRISTE EM TEMPO DE NATAL
Gosto da voz dos
livros.
Essas vozes
encontro-as nas livrarias, livrarias mesmo.
Fujo da FNAC a sete
pés, da Leya que outrora foi Barata, da Bertrand.
Em Março fecharam a
Pó dos Livros.
Fiquei órfão.
Procurei
alternativas.
Encontrei a Leituria,
ali na Rua Dona Estefânia.
Com algumas
limitações, é certo, mas uma livraria e a amabilidade do Victor a tentar arranjar
os livros que lhe pedia.
Soube agora que
fechou portas na véspera de Natal.
Vão para um novo
espaço, a abrir em Fevereiro, na Rua José Estevão.
Como será?
Até lá, volto a ficar
órfão e terei de percorrer as ruas dos bairros populares da cidade em busca de alguma porta aberta que se
assemelhe a uma livraria.
Dizem que em Londres,
Paris, Madrid já não há livrarias antes armazéns onde se encontram livros
inúteis que afirmam ter um público mas desconfio muito.
Só me falam em
globalização, nas Amazons.
Mas onde a voz dos
livros?
O cheiro dos livros?
O VELHO DINO
Não me perguntem
porque gosto deste «canastrão» que foi cantor, actor de cinema, «entertainer»
naquele gang que metia Frank Sinatra e Sammy Davis Jr.
Não me esqueço de O Feitiço da Lua com a lindíssima e
insinuante Cher, em que Dean Martin percorre o filme a cantar «That’s Amore»
Morreu no Dia de Natal
de 1995.
Para onde foi,
transportou., o bucho, milhões de litros de Whisky, nos pulmões toneladas de fumo de cigarros.
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Dean Martin,
Frank Sinatra,
Sammy Davis Jr.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2018
OLHARES
No sobe e desce do
Chiado, na tarde cinzenta de véspera de Natal, ouvir Fernando Pessoa, com a
queiroziana Casa Havaneza por detrás, citando Alberto Caeiro, dizer à turista
espanhola que pornograficamente se empoleira no pescoço, que «o maior mistério
do mundo é não haver mistério nenhum».
Mas saberá a tal
turista quem foi Fernando Pessoa?
Vamos pensar que sim
e, ao mesmo tempo, dizer baixinho os versos lidos, vez primeira, num dos livros
da classe primária salazarista:
Natal... Na província neva.
Nos lares aconchegados,
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.
Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só e sonho saudade.
E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei!
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Olhares
domingo, 23 de dezembro de 2018
POSTAIS SEM SELO
Cometi alguns erros, mas não faço a menor ideia de quais tenham
sido...
Sam Shepard em Espião na Primeira Pessoa
SARAMAGUEANDO
O Campo das Cebolas
vai passar a designar-se Largo José Saramago.
Em reunião pública da
Câmara Municipal de Lisboa foi aprovada, com votos contra do PSD e do CDS, a
nova designação daquele espaço da cidade.
Naquele local
encontra-se a Fundação José Saramago e é uma outra forma de homenagear o
escritor no tempo em que ocorrem vinte anos sobre a atribuição do Prémio Nobel
da Literatura.
POSTAIS DE NATAL
Postal enviado pela Angelika e o Hans-Martin.
«Not our Christmas-Tree!
We like it more small ans simple decoration!»
sábado, 22 de dezembro de 2018
RELACIONADOS
Em Olhar as Capas
surge a edição da casa de Podem Chamar-me Eurídice, adquirida já depois do 25
de Abril.
Mas a primeira
leitura tinha ocorrido antes, livro emprestado pelo Carlos Alberto que era o
campeão da rua no que tocava a livros «Fora do Mercado».
Nunca revelou como os
obtinha mas ninguém se preocupava com o pormenor.
Um livro de que
gostei muito e que me marcou.
Reli-o agora e continuo a achá-lo um livro muito
bonito, maravilhoso mesmo.
Uma história de amor
que tem no contexto histórico a vivência da clandestinidade e repressão da
subversão universitária dos anos 60. É também uma metáfora do assassínio do
escultor José Dias Coelho, abatido a tiro por agentes da PIDE.
Na etiqueta «José Dias Coelho» deste blogue, encontrarão evocações desse hediondo crime.
E este é o texto com
que um qualquer major de cavalaria determinou a proibição do livro:
«Trata-se de um romance de amor entre estudantes universitários, cuja
acção se situa num ambiente subversivo e com alguma imoralidade, em que o A.
manifesta o propósito de exteriorizar o seu espírito de facção.
Vão assinaladas as passagens das páginas 3º6 a 38, 50, 51, 71 a 76, 100, 103, 109,115, 129, 130, 139 a 141, 153, 174, 175 e 204 até à última página.
Vão assinaladas as passagens das páginas 3º6 a 38, 50, 51, 71 a 76, 100, 103, 109,115, 129, 130, 139 a 141, 153, 174, 175 e 204 até à última página.
É pois de proibir a circulação deste livro dada a sua índole
acentuadamente revolucionária e o despudor que o caracterizam.
O leitor
José de Sousa Chaves
Major»
No posfácio a Podem Chamar-me Eurídice, escreve
Orlando Costa:
«Durante quasi 50 anos – dos quais o autor partilhou 23 – a Censura
cresceu num grande corpo tentacular, opressor de pensamento e voz, para acabar interdirá
à porta das nossas casas. E em plena praça pública. Escritores de caneta e
lápis, de máquina de escrever ou esferográfica, hoje sabem que a arte e a
cultura oprimidas e reprimidas defendem-se com armas.»
Legenda: Orlando
Costa
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Censura,
Orlando da Costa,
Pide,
Relacionados
OLHAR AS CAPAS
Podem Chamar-me Eurídice
Orlando da Costa
Posfácio: Orlando da
Costa
Capa: Sebastião
Rodrigues
Colecção Ficcionistas
Portugueses nº 10
Seara Nova, Lisboa,
Outubro de 1974
Sob o tremor das mãos, Cesário sentiu o gelo da mortificação. Entre
eles era como se erguesse um muro de pedra, frio, rugosos e translúcido, como
se o olvido, imóvel, e a saudade súbita, renascessem a um tempo na paisagem da
memória.
De pesar e revolta eram essas primeiras lágrimas que não teve força
paras para suster e que num repente que toldaram o olhar: quanta amargura e
convicção, quanto desânimo havia na fadiga extrema daquela voz de loucura?...
-Quem somos? Quem sou?... – respondera à voz interrogadora. – Podem
chamar-me Eurídice… Sim, Eurídice… É um nome estranho… um nome antigo… um nome
bonito, já me disseram… - e foi talvez a última vez em que relembrou o rosto
daquele velho, seu companheiro numa viagem de comboio, sorrindo com doçura e
calma. O seu olhar macerado, erguendo-se num piedoso desafio, percorreu, como
se não visse, aqueles rostos desconhecidos. Pousou os olhos em Cesário e
emudeceu.
Dentro começava a ouvir-se o tombar dos livros das estantes, o espalhar
de papéis no chão no meio do silêncio austero das habitações s assaltadas. Os
olhos de alguém fixaram-se com vulgar malícia, naquelas figuras de pedra que,
agarradas à parede, talvez parecessem dois fugitivos surpreendidos num acto
secreto. Das mãos de outro o disco silenciosos e cúmplice caiu sobre os lençóis
amachucados e, num instante, o leito desfeito transformou-se numa testemunha
suspeita e tímida.
Etiquetas:
Olhar as Capas,
Orlando da Costa
COISAS EXTINTAS OU EM VIAS DE...
É um clássico
natalício: fazer algumas das compras para as jantas no Supermercado do El Corte
Inglês. É caro, mas Natal é sempre Natal.
Depois aproveitar a
boleia e comprar o CD de Natal da Smooth FM.
Mas para espanto meu
não tinham o disco e avisaram que vão deixar de vender CDs.
Lembro os natais em
que, nas lojas, se encontravam escaparates com discos de Natal. Foi assim que
fui constituindo a já longa colecção de discos de Natal.
Algo em vias de
extinção.
É assim que vamos
morrendo!...
Etiquetas:
Coisas Extintas Ou Em Vias de...,
Natal Canções de
POSTAIS SEM SELO
Sim, a poesia é a menos saudável das ocupações.
E ser poeta não é uma ambição minha:
É a minha maneira de estar sozinho.
E ser poeta não é uma ambição minha:
É a minha maneira de estar sozinho.
Legenda: não foi
possível identificar o autor/origem da fotografia.
sexta-feira, 21 de dezembro de 2018
quinta-feira, 20 de dezembro de 2018
RELACIONADOS
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Eduardo Guerra Carneiro,
Relacionados,
Vitor Silva Tavares
OLHAR AS CAPAS
Textinhos, Intróitos & etc
Vitor Silva Tavares
Capa: Luís Henriques
Pianola editores,
Lisboa, Outubro de 2017
Como se diz dos elefantes, também ele se considerou morto e morreu.
Foi-se indo morrendo. Deixando-se matar nele até que se matou. Subscrevendo o
homicídio.
Então se diz do Eduardo: suicida. Para não dizer: suicidado. Que já
matado estava quando se chegou à morte.
Não há endereçáveis para a responsabilidade ou culpa. O rapaz do
trapézio voador (assim se ficcionou: premonitório?) achava-se pronto ao voo sem
rede – metáfora de vida perigosa agora tomada à letra, ao gesto. Certa
madrugada, idas as festas felizes, aí vai ele pelo ar baixo: ponto final no
pátio das traseiras.
Ninguém teve nada com isso: não fui eu, não foste tu, etc.
(Do texto Na Morte de Eduardo Guerra Carneiro,
publicado na revista Telhados de Vidro
nº 2, Maio de 2004)
Etiquetas:
Eduardo Guerra Carneiro,
Olhar as Capas,
Vitor Silva Tavares
quarta-feira, 19 de dezembro de 2018
UM CANTINHO BOM DO ANO
O Natal será sempre o encanto e a ternura da impossibilidade.
O sem sentido de alguns presentes, como naquele conto de O’ Henry: ela
vendeu o lindo e comprido cabelo para lhe comprar uma corrente para o relógio,
de que ele tanto gostava; ele empenhara o relógio para lhe comprar as
travessas, de que ela tanto gostava, para colocar no cabelo.
Karl Valentim preferia que cortássemos do calendário o Dia De Natal, se com isso conseguíssemos que os restantes 364 dias do ano fossem todos de Natal.
Gostaria que o Natal não tivesse o carácter de que se tem revestido nos últimos anos: um consumismo desenfreado que dele fazem o dia mundial da hipocrisia.
As noites de Natal, aquelas que não mais posso repetir, passava-as em casa do meu pai, a família mais chegada, a comer bacalhau cosido com couves, a beber vinho tinto alentejano, a conversar pela noite fora, rematando-se a festa com carne de porco frita envolta em ovos mexidos, a que se seguiam os doces, umas fatias douradas, filhós e uns cálices de licor de ginja que, por Junho, se tinha colocado a marinar numa grande garrafa de vidro, juntamente com açúcar, aguardente branca, um pau de canela.
A manhã começava a nascer, saía para regressar onde vivia e gostava do
cheiro de Natal que sentia pelas ruas.
Tentamos fazer o mesmo com os filhos, alcançar a reinvenção dessas noites felizes, mas é mais que certo: nunca se volta aos sítios onde fomos felizes.
Falta, essencialmente, esse passe de mágica, que eram as conversas do
meu pai, um brilhante contador de histórias.
Há coisa melhor que o Natal?
Há: os amigos!
E que mais podemos querer do que um amigo para nos acender o dia, e que
esse dia seja Natal?
O Natal é um cantinho bom do ano, um aconchego.
Texto de Gin-Tonic
Legenda: Desenho de
Alfredo Morais
terça-feira, 18 de dezembro de 2018
ESTAVA A NEVAR
Lembro-me do nosso primeiro Natal juntos. O nosso único Natal juntos. (E quando os presentes deixam de chegar e as luzes da árvore Natal se apagam, compreendemos que estamos velhos.)
Londres no Inverno. A primeira neve. Lizzie com um casaco azul-escuro de tecido forte e neve nos cabelos. A pista de gelo na Somerset-House. A árvore em Trafalgar Sqaure.
Jantámos fora na véspera de Natal, num “pub” modesto, mas onde a comida era boa. Bebemos vinho, a marca mais cara que eu podia pagar. Depois fomos a um concerto de Natal. Regressámos a casa perto da meia-noite e demos os presentes um ao outro: para ela uns brincos de prata compridos, para mim um cachecol azul.
No final do ano fomos dançar e depois bebemos champagne em Trafalgar Sqaure. O único ano que começámos juntos. Estava a nevar.
Ana Teresa Pereira em O Fim De Lizzie
segunda-feira, 17 de dezembro de 2018
RELACIONADOS
O poema de Vinicius de Moraes referido no texto do Luís Miguel Mira:
Os assassinos de Emmett
Chegaram sem avisar
Mascando cacos de vidro
Com suas caras de cal
Os assassinos de Emmett
Entraram sem dizer nada
Com seu hálito de couro
E seus olhos de punhal
Os assassinos de
Emmett
Quando o viram ajoelhado
Descarregaram-lhe em cima
O fogo de suas armas
Enquanto justificada
A mulher faz um guisado
Para esperar o marido
Que a mando seu foi vingá-la
Quando o viram ajoelhado
Descarregaram-lhe em cima
O fogo de suas armas
Enquanto justificada
A mulher faz um guisado
Para esperar o marido
Que a mando seu foi vingá-la
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Luís Miguel Mira,
Vinicius de Moraes
O ROSTO DE EMMETT TILL
Os assassinos de Emmett
Chegaram sem avisar
Mascando cacos de vidro
Com suas caras de cal
(Vinicius de Moraes –
Blues para Emmett Louis Till)
Andar por uma estrada
secundária e deserta no Mississippi profundo, numa tarde feia, cinzenta e
chuvosa, é como caminhar por um cenário fantasmagórico onde, a todo o momento,
um qualquer zombie se pode atravessar no nosso caminho e acenar com os braços,
como quem nos pede ajuda…
Numa clareira à beira
da estrada, na curva de um rio ou no arvoredo lá ao fundo, um negro pode ter
sido espancado, deitado às águas ou pendurado no ramo mais alto de uma árvore…
Era bom que estivesse
a exagerar, mas não estou…
Basta ouvir ou ler as
declarações de quem viveu nestes sítios, há muitos anos atrás.
Toda a gente conhece
alguém que um dia partiu de casa para não mais voltar… E os que tiveram a sorte
de regressar vieram com as costas abertas a chicote, pernas e braços partidos e
a cara feita num bolo…
Poucas dessas
histórias viram a luz do dia.
Por vergonha ou medo
de represálias, ficaram encerradas no interior da humilhação de quem sofreu na
pele, ou na dor de quem viu partir, para sempre, os seus ente-queridos.
Mas a história que
hoje vos vou contar viu a luz do dia. Muitos desejaram que não tivesse visto,
mas viu…
Corria o ano de 1955
e Emmet Till era um rapaz de Chicago, de 14 anos e órfão de pai, que, como
quase todos os anos, tinha vindo passar uns dias de férias em Agosto a casa do
seu tio-avô Reverendo Moses Wright, no lugarejo de Money, no Mississippi.
Como todos os rapazes
da cidade que gostam de se exibir na província, Emmett era extrovertido e
gabarolas. Uma tarde, após terem andado na apanha do algodão, ele e mais uns
quantos amigos dirigiram-se a uma mercearia local (a Bryant’s Grocery)
para comprarem alguns doces e beberem refrescos. À saída, num ato de pura
exibição para os amigos, Emmett terá assobiado à empregada de serviço na
mercearia, uma tal Carolyn Bryant, de 21 anos, mulher do proprietário da loja.
Assustados com o que
viram e conhecedores das regras locais em que um negro não deve tomar a
iniciativa de se dirigir a uma mulher branca que esteja sozinha, e muito menos
enviar-lhe um piropo através de um assobio, os amigos de Emmett desataram a
fugir para as suas casas, enquanto que este se dirigiu, calmamente, para casa
do seu tio-avô, como se nada fosse.
Durante uns dias nada
se passou, mas Carolyn Bryant fizera, entretanto, queixa do miúdo ao seu marido
e este havia-lhe garantido que lhe iria dar uma lição de boas maneiras…
Quatro dias após o
sucedido, o marido, Roy Bryant, e o seu meio-irmão, J. W. Milam, irromperam
pela casa do tio-avô de Emmett e levaram o miúdo à força, dizendo que lhe
iriam dar apenas umas quantas vergastadas, para ele aprender como é que
se deve tratar uma mulher branca…
E agora vou abreviar,
porque a história está bem contada em vários sítios na Internet e quero
poupá-los aos pormenores mais horrorosos…
Dir-vos-ei, apenas,
que o perigoso Emmet Till, de 14 anos, foi levado para um celeiro em Glendora e
aí morto à pancada. O seu crânio foi esmagado, o seu rosto foi desfigurado a
murro e com o tiro de uma caçadeira, e o que restou do seu corpo foi enfiado
num saco, enrolado com arame farpado a um velho ventilador de 35 kg dum moinho
de algodão, para fazer peso, e deitado ao rio Tallahatchie, vindo a ser
descoberto por um pescador vários dias mais tarde.
O corpo do miúdo
ficou irreconhecível e só pôde ser identificado porque ainda tinha num dedo um
velho anel do seu pai, com as suas iniciais, que a mãe lhe tinha dado antes de
partir para casa do seu tio-avô.
As autoridades locais
fizeram pressão para o corpo fosse enterrado no Mississippi, o mais rapidamente
possível, mas a mãe de Emmett opôs-se e conseguiu que ele fosse transferido
para Chicago.
E mais…
Contrariando todos os
conselhos que lhe tinham sido dados, bem como todas as pressões que tinha
sofrido, mandou abrir o caixão para que todos pudessem ver bem o corpo
despedaçado e o rosto desfigurado do seu filho. Jornalistas vieram, como
vieram, também, milhares de pessoas durante quatro dias, para prestar ao rapaz
uma última homenagem.
E Emmet Till
tornou-se uma questão nacional.
Mas a história,
infelizmente, não acaba aqui.
Os dois suspeitos
foram presos e acusados.
E houve julgamento,
claro está…
E rápido…
Naqueles tempos, nos
Estados Unidos, havia sempre julgamento…
Uma palhaçada de
julgamento!
Em boa verdade, o que
é que esperavam…? De que valia a vida de um pobre rapaz de 14 anos, no
Mississippi…? Como já não bastasse o incómodo de terem de simular um
julgamento, ainda queriam que dois puros homens de raça branca fossem acusados
e aprisionados…?
Mas, desculpem-me, a
história ainda não acaba aqui…
Como nos EUA, após
ter sido julgado e ilibado, ninguém pode ser acusado duas vezes pelo
mesmo crime, quatro meses depois do julgamento os acusados venderam a sua
história à revista “Look” por quatro mil dólares (mil e quinhentos para cada um
mais mil para o advogado…) e contaram, despudoradamente e com todos os
pormenores, a forma como tinham efetuado o rapto e o assassinato do miúdo. O título do artigo – “The Shocking Story of an Approved Killing” – diz
tudo…
Mas a história ainda
não vai acabar aqui…
Após o funeral, a mãe
de Emmet Till, Mamie Bradley, enviou um telegrama ao presidente Eisenhower
solicitando a sua intervenção no sentido de repor a justiça no assassinato do
seu filho. Não obteve qualquer resposta…
50 anos mais tarde
alguns documentos do processo foram divulgados pelo FBI. Entre eles encontra-se
uma Circular da Casa Branca redigida por um tal Max Rabb, Conselheiro de
Eisenhower para as minorias, na qual se dizia que a mãe de Emmett Till era um
mero instrumento dos comunistas e que “qualquer reconhecimento perante ela
poderia ser utilizado em prol da causa comunista neste país…”.
Era necessário,
portanto, que o caso fosse esquecido o mais depressa possível, como chegou a
pedir um jornal do Mississippi, o Jackson Daily News.
Mas o caso não foi
esquecido…
William Faulkner,
pouco avezo a manifestações públicas em situações desta natureza, escreveu um
artigo violento e acusador num jornal local…
Um escritor negro do
Mississippi, Jerry W. ward Jr., dedicou-lhe um poema, “Don’t Be Fourteen in
Mississipi”, que pode ser lido na Net.
Vinicius de Moraes
dedicou-lhe, também, um poema em 1962, “Blues para Emmett Louis Till”, que
Toquinho musicou.
Para terminar em
beleza, a virgem ofendida, Carolyn Bryant, acabou por confessar em 2007 que tudo
o que havia dito em tribunal acerca do comportamento de Emmet Till era mentira,
e a única ofensa que o miúdo lhe tinha feito fora, efetivamente, o assobio…
Não só no âmbito da
população negra, mas também junto de um público branco mais esclarecido, o “affaire”
Emmet Till foi um escândalo que ajudou a perceber como era a vida e a justiça
no Sul profundo, e gerou um movimento de condenação e solidariedade de grandes
proporções, a nível nacional.
Poucos meses depois,
a 1 de Dezembro de 1955, na cidade de Montgomery, Alabama, Rosa Parks
recusou-se a ceder o seu lugar num autocarro a um branco, tendo sido presa. Com
Emmet Till ainda na memória de todos, a reação a este ato iria marcar, para
sempre, a história da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos,
mas isso é história que vos contarei noutra oportunidade.
Como vos disse, o dia
estava feio, chuvoso e cinzento quando cheguei a Money, no Mississippi, que é
um lugarejo no meio de nenhures com meia-dúzia de casas nas redondezas.
O letreiro do
“Mississippi Freedom Trail” não deixava qualquer dúvida. Era ali que se situava
a Bryant’s Grocery e fora ali que tudo tinha começado.
Mas olhava-se à volta
e não se via nada, a não ser uma velha bomba de gasolina que eu sabia muito bem
que não era a mercearia que procurava, porque já a tinha visto em fotografias.
Bryan’s Grocery,
nem vê-la…
Paul Theroux, no seu
livro “Sul Profundo” que aqui há tempos mencionei, já nos tinha alertado.
A Bryant’s Grocery estava no topo da lista dos “Dez Mais Ameaçados
Locais Históricos do Mississippi”, por duas razões: primeiro, porque do
edifício inicial mais não restava do que algumas paredes em estado
periclitante, cobertas por ervas e arbustos, naquilo a que ele próprio chamou “a
estrutura mais fantasmagórica que vira em todas as minhas viagens pelo Sul”;
em segundo, porque talvez que aos próprios habitantes locais interessasse mais
deixar cair o que restava, para que essa má memória desaparecesse, para sempre,
das suas vidas…
Lá muito perto,
também as águas do rio Tallahatchie, para onde há sessenta e três anos atrás
fora lançado o corpo de Emmett Till, corriam feias, tristes e silenciosas, como
se também elas sentissem vergonha por se terem visto envolvidas nesta triste
história…
Este texto já vai
longo e peço-vos desculpa pelo incómodo.
Mas não vos quero
deixar sem vos convidar ao visionamento de um pequeno filme de sete minutos que
encontrei no YouTube.
Dir-me-ão que não há
muita diferença entre aquilo que lá está dito e o que vos acabei de contar…
Mas existe uma
diferença muito importante: é que lá se vê o rosto de Emmet Till.
Também eu, tal como a
sua mãe há sessenta e três anos atrás, fiz questão que vissem e fixassem bem
esse rosto…
Num Mundo em geral, e
numa Europa em particular, em que a xenofobia, a intolerância e o racismo
avançam a passos de gigante, é cada vez mais importante vermos e não
esquecermos o rosto de Emmett Till.
PS:
Como vos referi no
texto, a história de Emmett Till está profusamente documentada na Net. O livro
de Paul Theroux (págs 245 a 258) contém informações importantes, nomeadamente
no que respeita ao Relatório do FBI de 2004, que não me lembro de ter visto em
mais lado nenhum.
domingo, 16 de dezembro de 2018
OLHAR AS CAPAS
A Mãe de um Rio
Agustina Bessa-Luís
Babel, Lisboa,
Outubro de 2014
Antigamente, sim, antigamente, a terra tinha a forma quadrada e um rio
de fogo corria na superfície. Não havia aves nem plantas, as águas estavam nos
ares como nevoeiros cor de ferro e os ventos não as tinham distribuído ainda
pelos quatro cantos agudos da Terra. Onde estava o peixe minúsculo de ventre
negro, ou as bonitas serpentes de escamas verdes? Não existia o trigo nem a mão
humana, nem mesmo o sono ou a dificuldade, que foi o segundo grito da criação.
Passamos hoje por um caminho que tem nele marcado outras pegadas, e ocorrem-nos
as histórias doutras idades. Por deserto que esteja o campo e frio o sol, o
tempo está presente e nos penetra de sabedoria e fortaleza. A única solidão é
aquela que não tem passado.
Se hoje percorrermos um velho lugar inóspito, como a serra da Nave, mil
lembranças nos acodem, e cada pedra desconhecida, cada ramo de acónito e de
malvaísco nos apresenta uma parada de vidas, de funções, de razões e de
espiritualidade. Temos que morrer um dia, mas que deixemos no solo húmido a
sombra da nossa obediência mortal.
Mas comecemos a história da mãe de um rio.
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Agustina Bessa-Luís Livros,
Olhar as Capas
PEQUENOS CADERNOS
Que quem critica o Natal como um pretexto forçado para
reunir familiares, distantes ou não, se lembre que é um melhor motivo que o seu
próprio funeral.
Colaboração de Aida Santos
sábado, 15 de dezembro de 2018
OLHAR AS CAPAS
Um Homem Parado no Inverno
Baptista-Bastos
Capa: João Segurado
Edições O Jornal,
Lisboa, 1991
Ergue-se do banco e dirige-se, lentamente, para a azinhaga.
Dissolveu-se a estranha sufocação de cerco. Pára um pouco, olha em redor de si,
para a noite e para as sombras. Um pássaro de largo porte voeja pesadamente num
círculo largo; depois desfaz o rumo e integra-se na escuridão. Ouve um piar
prolongado. O recorte do casario parece alterar-se. O vento traz consigo um
odor acre, e distingue o som profundo das águas do mar; folhas de árvores e
esporos vagabundos redemoinham. Um murmúrio, um sussurro, algo de impalpável,
nada de importante.
O inverno vai ser longo e áspero.
Vou ter muito tempo para recordar.
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Baptista-Bastos Livros,
Olhar as Capas
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