José
Saramago não gostava do Natal. Tão pouco de festas de aniversário.
Talvez
reflexo de uma infância e de uma adolescência muito difíceis o Natal, para
Saramago, não foi um toque de mágica.
Deixou escrito numa crónica; para incréus empedernidos como eu, o caso
não tem assim tanta importância: é mais uma das trezentas mil datas assinaladas
de que se servem inteligentemente as religiões para aferventar crenças que no
passar do tempo se tornariam letra morta e água chilra.
De uma maneira seca, quase definitiva, finalizou um poema: É dia de
Natal. Nada acontece.
Podia
ser Natal e não ser farsa, como escreveu António Manuel Ribeiro numa canção dos
“UHF”.
Na
obra lida de José Saramago, encontrei três abordagens ao Natal.
O
poema Natal em Os Poemas Possíveis, a
crónica A Neve Preta em Deste Mundo e do Outro e
outra crónica em A Bagagem do Viajante que, precisamente,
intitulou Natalmente crónica.
Tenho
conhecimento que na revista “Colóquio/Letras” nº 151/152,
Fevereiro 2000, totalmente dedicada a José Saramago, está publicado um conto
inédito: Natal.
Fica
aqui o excerto de A Neve Preta que consta do livro de crónicas Deste
Mundo e do Outro:
«Estes pequenos filhos
dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como
quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são
as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão
as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar:
que são crianças?
Que seres estranhos são
esses que viram para nós os seus rostos frescos, que nos perturbam às vezes com
um olhar subitamente profundo e sábio, que são irónicos e gentis, débeis e
implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de os ver crescer, de os
admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos impacientes, nervosos, porque
estamos diante de uma espécie desconhecida... Quando passam a ser nossos
iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que recordamos, como
observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos porque eles não
gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se reconhecem. São adultos,
agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um
desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se
não tenho razões para insistir: é preciso cuidado com as crianças... Não o
cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta
rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e
subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição
plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta:
«Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de
lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os
alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes
casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino
Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na
segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e
apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que
todos nós passámos. De repente... Ah, mas é preciso muito cuidado com as
crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor
nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho
mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração.
Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não
responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na
sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de
pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta
porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu...»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito
de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?»
José Saramago em Deste Mundo e do Outro, página 189.

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