terça-feira, 6 de dezembro de 2016

QUOTIDIANOS



O poeta polaco Zbigniew Herbert teve o cuidado de dizer a si próprio: «deverás ir tranquilo ao teu próprio funeral.»

Razão suficiente para que, quando a dita lhe bater à porta, deixar recado aos amigos e  familiares:

Embarquem no cacilheiro da rota da Trafaria, onde o Tejo se faz ao mar, a meio caminho, despejem as cinzas, de quem muito gostou de andar por aqui, depois almoço na Antiga Casa Marítima: filetes de tamboril, arroz de feijão, salada, não se esqueçam de pedir para a cozinheira lançar uma boa mão cheia de coentros, vinho da casa.

E não se ponham com veleidades, com mariquices, com isto, com aquilo, porque ele está a espreitar dos bastidores.

Também na morte é importante saber dar uma festa, disse aos netos a rainha-mãe, devoradora de gin-tonic, viciada em corridas de cavalos, que também adorava uma boa cachimbada.

»A história dos homens é desde sempre mistério de vida e de morte. Choramos os nossos mortos e outros chorarão a nossa morte. Assim se faz o nosso caminhar sobre a terra.»

Ficou-lhe gravada uma frase do jornalista Victor da Cunha Rego: «uma pessoa preparar-se para a morte é a grande finalidade da vida.».

Foi em Setembro do ano de 1977, na casa que, então, o pai tinha em Almoçageme, que se lembra de ter pensado, pela primeira vez, no assunto.

Tinha despachado o «Alta Fidelidade» do Nick Hornby, num só fôlego.

Há por lá uma passagem em que Hornby escreve:

«Não há propriamente muitas canções pop acerca da morte: pelo menos canções boas. Talvez seja por isso que eu gosto de muita pop e acho a música clássica um bocado tétrica. Havia aquele instrumental do Elton John, “Song for Guy”, mas não passava de umas marteladas no piano que tanto podiam ser ouvidas no aeroporto como no mosso funeral.

- Vamos lá pessoal, as cinco melhores canções pop sobre a morte.


- Genial – diz o Barry. – Uma lista de Homenagem ao pai da Laura. Fixe. “Leader of the Pack”. O tipo morre a andar de mota. E a seguir temos “Dead Man’s Curve” dos Jan e Dean, e “Terry” da Twinkle… e aquela do Bobby Goldsmoro, “ And Honey, I Miss You”…


- E que tal “Tell Laura I Love Her”? Ia ser um êxito.


Ainda bem que a Laura não está aqui para ver como nos divertimos à custa do pai dela.


- Já resolvi que música vou querer no meu. “One Step Beyond”, dos Madness. “You Can’t Always Get What You Want”.»


À noite, debaixo da parreira de uva americana, ou morangueira, sentindo o aroma, ouvindo o silêncio dos ralos e das cigarras, lembra-se de lhe ter contado o episódio e, ao mesmo tempo, perguntado, que música ele escolheria.

Uma pausa muito grande, e depois a resposta:

Requiem de Mozart.

Passados meses, pensando que a morte é o único destino que temos assegurado, por mera brincadeira, começou a alinhar uma cassette (os CDs eram, ainda, uma miragem) de músicas e canções para serem ouvidas antes de o fogo o devorar.

Ainda nem sequer tinha chegado ao princípio dos princípios e desistiu.

Os amigos não mereciam tal castigo.

Mas algum toque teria que existir.

Foi quando concluiu que bastava uma única canção: «Bye, Bye Love», na versão, ao vivo, de Simon and Garfunkel, «bye, bye love, bye, bye happiness.»

Esperança para o futuro: a de aprender a morte serena, a que contemplava a luz no musgo daquela parede da casa de Almoçageme, a parede junto ao celeiro, onde o Marcolino guardava as maçãs reinetas, as batatas, as cebolas, as enxadas, o aroma das uvas americanas, ou morangueiras, o silêncio dos ralos e das cigarras.

Nunca aprendemos tudo sobre despedidas e o grande problema é que o tal dia, dura uma eternidade.

Entrada para uma solicitação do poeta José Gomes Ferreira:

«Enterrem também comigo na cova,
Graças a um novo invento de gravação magnética nas pedras
Música de Bach e de Mozart
É o único ar
Que os mortos podem enigmaticamente respirar»

Texto encontrado em Ié-Ié

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