sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

AINDA POSSO DAR ABRAÇOS COM O BRAÇO DIREITO...


A 29 de Março de 1963, Mário-Henrique ainda está em S. Paulo e escreve à sua «Isabelinha de blusa branca».

Revela que finalmente conseguiu, por portas, travessas, um passaporte, «custou-me os olhos da cara». Negaram-lhe a França e a Alemanha mas está decidido a voltar à «minha saudosa Europa, embora ainda não tivesse conseguido o documento brasileiro que me dá a existência jurídica neste país.»

Aproveita, então, para dizer que «esteve preso quatro dias ao fazer parte da organização do “Congresso da Solidariedade de Pro-Cuba” que agora se está realizando aqui, com gente de toda a parte do mundo. Ao fim desses dias, deputados e advogados camaradas conseguiram “habeas-corpus” e lá saí, mas levei tanta pancada e fiquei tanto tempo pendurado pelos braços (estes sul-americanos têm uma organização político-policial totalmente filha da puta que creio ter ficado com o ombro esquerdo estoirado para o resto dos meus dias. Mas não faz mal, ainda posso dar abraços com o braço direito.
Também me deu uma fúria de fazer qualquer coisa que fique quando me for embora e, assim, aceitei dirigir um grupo de teatro-oficina onde estou agora ensaiando uma peça (“O Auto da Compadecida”) misto de auto medieval, “comédia dell’arte” e peça social. Aí, encontrei um pouco daquele calor humano de que tanto te falo e tanto desejo. Chego a ficar envergonhado ao ver a maneira como aceitam o que eu digo, como desejam compreender-me. Parece que eu sei tudo (e tu sabes que, na realidade, não sei nada, Isabelinha). É gente que deseja, tanto como eu, que não haja mais ódio nem mais violência entre os homens.
Além disso, chamaram-me para assistente de um filme sobre as favelas de S. Paulo (os “queridos” bairros da lata, da fome e da miséria). São dois franceses quem faz o filme, o Maurice e o Jean-Claude, dois tipos do Partido com quem já trabalhei o ano passado num filme sobre Sindicatos (proibido depois, como era de esperar).
É claro que tudo isto, teatro e cinema, não me dá um tostão, mas que importa? Às vezes não tenho dinheiro nem para um cigarro, outras vezes até posso comprar uma dúzia de garrafas de whisky. Mas, de facto, que importa? Não tenho companheira, não tenho casa, não tenho nada…

Mário-Henrique Leiria em Depoimentos Escritos
Legenda: favela em São Paulo

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