A 29 de Março de
1963, Mário-Henrique ainda está em S. Paulo e escreve à sua «Isabelinha de
blusa branca».
Revela que finalmente
conseguiu, por portas, travessas, um passaporte, «custou-me os olhos da cara». Negaram-lhe a França e a Alemanha mas
está decidido a voltar à «minha saudosa Europa, embora ainda não tivesse
conseguido o documento brasileiro que me dá a existência jurídica neste país.»
Aproveita, então,
para dizer que «esteve preso quatro dias
ao fazer parte da organização do “Congresso da Solidariedade de Pro-Cuba” que
agora se está realizando aqui, com gente de toda a parte do mundo. Ao fim
desses dias, deputados e advogados camaradas conseguiram “habeas-corpus” e lá
saí, mas levei tanta pancada e fiquei tanto tempo pendurado pelos braços (estes
sul-americanos têm uma organização político-policial totalmente filha da puta
que creio ter ficado com o ombro esquerdo estoirado para o resto dos meus dias.
Mas não faz mal, ainda posso dar abraços com o braço direito.
Também me deu uma fúria de fazer qualquer coisa que fique quando me for
embora e, assim, aceitei dirigir um grupo de teatro-oficina onde estou agora ensaiando
uma peça (“O Auto da Compadecida”) misto de auto medieval, “comédia dell’arte”
e peça social. Aí, encontrei um pouco daquele calor humano de que tanto te falo
e tanto desejo. Chego a ficar envergonhado ao ver a maneira como aceitam o que
eu digo, como desejam compreender-me. Parece que eu sei tudo (e tu sabes que,
na realidade, não sei nada, Isabelinha). É gente que deseja, tanto como eu, que
não haja mais ódio nem mais violência entre os homens.
Além disso, chamaram-me para assistente de um filme sobre as favelas de
S. Paulo (os “queridos” bairros da lata, da fome e da miséria). São dois
franceses quem faz o filme, o Maurice e o Jean-Claude, dois tipos do Partido
com quem já trabalhei o ano passado num filme sobre Sindicatos (proibido
depois, como era de esperar).
É claro que tudo isto, teatro e cinema, não me dá um tostão, mas que
importa? Às vezes não tenho dinheiro nem para um cigarro, outras vezes até
posso comprar uma dúzia de garrafas de whisky. Mas, de facto, que importa? Não
tenho companheira, não tenho casa, não tenho nada…
Mário-Henrique Leiria
em Depoimentos Escritos
Legenda: favela em
São Paulo
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