Afasta-se Ricardo Reis em direcção à Rua do Crucifixo,
atura a insistência de um cauteleiro que lhe quer vender um décimo para a
próxima extracção da lotaria, É o mil trezentos e quarenta e nove, amanhã é que
anda a rodam não foi esse o número nem a roda anda amanhã, mas assim soa o
canto do áugure, profeta matriculado com chapa no boné, Compre, senhor, olhe
que se não compra pode-se arrepender, olhe que é palpite, e há uma fatal ameaça
na imposição. Entra na Rua Garrett, sobe ao Chiado, estão quatro moços de
fretes encostados ao plinto da estátua, nem ligam à pouca chuva, é a ilha dos
galegos, e adiante deixou de chover mesmo, chovia, já não chove, há uma
claridade branca por trás de Luís de camões, um nimbo, e veja-se o que as
palavras são, esta tanto quer dizer chuva, como nuvem, como círculo luminoso, e
não sendo o vate Deus ou santo, tendo a chuva parado, foram só as nuvens que se
adelgaçaram ao passar, não imaginemos milagres
de Ourique ou de Fátima, nem sequer esse tão simples de mostrar-se azul o céu.
José Saramago em
O Ano da Morte de Ricardo Reis
Legenda: fotografia Pinterest
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