O Anacronista
Manuel António Pina
Colecção Ficções nº
43
Edições Afrontamento,
Porto, 1994
O que foi feito dos meus amigos e das coisas belas e desmesuradas por
que todos nós perdemos e ganhámos a juventude? Olho em volta e resigno-me: os
meus amigos cansaram-se e jazem agora em empregos rotineiros à espera da
trombose ou do enfarte. Alguns passaram-se com armas e bagagens (e,
naturalmente, proveito) para o lado do inimigo. Os melhores (mas que sei eu?)
engordaram – para dizer a verdade, todos engordámos... – e tornaram-se cépticos
e amargos carregando a nossa memória comum como um pecado envergonhado. Muitos
morreram em guerras sem sentido, ou tão só de tédio, de longo e insuportável
tédio. Outros partiram para improváveis distantes lugares; um enlouqueceu (e
esse foi, se calhar, o que, imóvel e cegamente, partiu para mais longe).
Aquilo por que, há 20 anos, estávamos dispostos a perder tudo o que tínhamos
(que não era, aliás, grande coisa: tempo, paciência, a breve vida),
desmoronou-se mesmo antes de termos levantado as primeiras inseguras paredes.
Atrás de nós veio pesadamente, a perigosíssima estirpe da chamada gente prática
(laboriosas formigas que, enquanto cantávamos na rua e fugíamos à frente de
todas as policias, mastigavam metodicamente as sebentas em sombrios quartos
onde não chegavam o fogo dos sonhos nem o clamor da vida), e reduziu a utopia a
dimensões razoáveis e geriveis. (Façamos-lhe, no entanto, justiça: talvez, quem
sabe?, sem eles cedo a despensa se tivesse esgotado e a festa tivesse acabado
mal e numa tremenda ressaca...)
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