A minha vida de leitor está repleta de grandes livros, de grandes começos.
Há dias,
reparei que Moby Dick ainda não tinha entrado em Olhar as Capas.
Espanto dos
espantos.
Já lá mora e
agora entra nos Começos de Livros.
Lamentavelmente
perdeu-se – onde? Como? - a velha edição, comprada pelo meu pai, da Moby
Dick da Estúdios Cor. A que hoje faz parte da Biblioteca da Casa é uma
edição da Unibolso, mas mantém a tradução de Alfredo Margarido e Daniel
Gonçalves.
É um enorme
começo de livro de um fascinante livro, um clássico da literatura.
«Tratem-me por Ismael. Há alguns anos –
não interessa quantos – achando-me com pouco ou nenhum dinheiro na carteira, e
sem qualquer interesse particular que me prendesse à terra firme, apeteceu-me
voltar a navegar e tornar a ver o mundo das águas. É uma maneira que eu tenho
de afugentar o tédio e de normalizar a circulação. Sempre que sinto um sabor a
fel na boca; sempre que a minha alma se transforma num Novembro brumoso e
húmido; sempre que dou por mim a parar diante de agências funerárias e a
marchar na esteira dos funerais que cruzam o meu caminho; e, principalmente,
quando a neurastenia se apodera de mim de tal modo que preciso de todo o meu
bom senso para não começar a arrancar os chapéus de todos os transeuntes que
encontro na rua – percebo então que chegou a altura de voltar para o mar, tão
cedo quanto possível. É uma forma de fugir ao suicídio.»
Sempre
guardei – está devidamente sublinhado -
aquele:
«Sempre
que sinto na boca uma amargura crescente, sempre que sinto na minha alma a
humidade e a chuva de Novembro, sempre que minha hipocondria me domina de tal
modo que é necessário um forte princípio moral para me impedir de sair
deliberadamente para a rua e socar metodicamente o chapéu das pessoas - … então
considero que é a altura de fazer-me ao mar e o mais depressa possível.»
Um grande
livro e não poderá ser esquecido o filme que John Huston realizou em 1956. Uma
daquelas tarefas julgadas quase impossíveis mas de que o velho John Huston, se
sai mito bem, tal como Gregory Peck no papel do capitão Ahad, para nunca se
deixasse de ouvir a perna de pau a bater no convés do navio Pequod.
Também não se
pode esquecer, logo a abrir o livro, a Etimologia fornecida pelo defunto
contínuo de uma escola elementar:
«O pálido contínuo! Bem me recordo dele,
com a roupa, o coração, o corpo e o cérebro a largar o último fio… Sacudia sem
cessar o pó dos seus velhos léxicos e das suas velhas gramáticas, com um lenço
bizarro, cujo padrão, como por escárnio, representava as joviais bandeiras de
todas as nações do mundo. Adorava espanar a poeira dos velhos calhamaços;
aquilo era uma maneira subtil de não esquecer que também se havia de
transformar em pó.»
O capitão
Ahab impõe à sua tripulação a concretização do seu maior desejo – destruir a
grande baleia branca. Sob o seu rígido comando a missão comercial do Pequod é
alterada tornando-se uma missão de vingança.
Para Ahab, o monstro que destruiu o seu corpo não é uma criatura, mas sim o
símbolo de algo desconhecido.
Sem medo das catástrofes naturais, dos maus presságios ou mesmo da morte, Ahab
impele o seu navio em direcção ao perigo.
O capitão Ahab,
lembra à sua tripulação que o objectivo da viagem comercial vai ser alterada e
passa a ser uma demanda vingativa, a caça à baleia branca que o tinha deixado
sem uma perna e que agora era uma perna que tinha sido confecionada a bordo com
um pedaço de osso polido da queixada de um cachalote.
Mais à frente,
páginas 310 surge-nos o avisos:
Não há portanto nenhum meio de saber-se
como é a baleia sem irmos cacá-la. Simplesmente isso corresponde ao risco de uma
pessoa ser esmagada pelo peso da sua curiosidade e depois arrastada para o
fundo do mar. Portanto, aconselho ao leitor que modere a sua curiosidade a
respeito das baleias.»
O livro está
largamente sublinhado. Numa das margens a observação: ler o Sermão de Jonas na
baleia. «O Senhor fez com que um grande peixe engolisse Jonas, e ele ficou
dentro do peixe três dias e três noites».
Mas
fiquemo-nos com o capitão Ahab monologando, páginas 167, com o seu cachimbo,
recordando eu velhas frases lidas aqui e ali: «um fumador de cachimbo nunca
está só», ou este pedaço de prosa do jornalista António Carvalho: «Quando os
meus filhos nasceram, o fumo do meu cachimbo recebeu-os uma a um, como uma
nuvem de boas vindas. Uma nuvem feita de imaginação e de sonho. Todas as minhas
casas ficaram impregnadas desses odores – a cada um o seu perfume. Mais tarde
quando me separei, os meus filhos confessavam-me que sentiam a falta do cheiro
do meu cachimbo. Pelo menos ficou-lhes o meu rasto… Efémero, como qualquer fumo…»
Mas
regressemos ao monólogo do capitão:
«Ahab ficou por um momento debruçado sobre
a amurada, e depois, como já era seu costume recente, chamou um dos marinheiros
de quarto e mandou-o buscar ao camarote o cachimbo e o banco de marfim.
Acendendo o cachimbo na lâmpada da bitácula e colocando o banco a barlavento,
sentou-se a fumar.
Duranta alguns momentos saíram da sua
boca constantes e densas baforadas de fumo que o vento lhe arrojava à face.
«Porque será – monologou ele – que este
fumo perdeo condão de ma calmar? Oh! meu cachimbo, triste vida a minha se os
teus encantos se perderam! Aqui tenho estado eu a fumegar sem prazer – a fumar
sem dar por isso, contra o vento; e soltando fumaças nervosas como uma baleia
moribunda, cujos derradeiros jacto são mais violentos e cheios de agonia. Que
se passa contigo, meu cachimbo? Foste criado para tranquilizar, para lnçar
suaves vapores brancos para o meio de tranquilos cabelos brancos e não para as
ásperas madeixas cor de ferro do teu amo. Não mais fumarei…
Lançou ao mar o cachimbo ainda aceso; o
lume silvou nas ondas e no mesmo instante a ressaca do navio lançou para o
largo a bolha que assinalava o ponto onde o cachimbo se tinha afundado.»
Legenda: Gregory Peck no filme Moby Dick de John Huston
3 comentários:
E o que eu aprendi sobre o homem, sobre o mar, sobre navios (bombordo, estibordo, ré, velas, barlavento, sotavento, etc etc) e sobre navegação.
Que grande livro!
Um autêntico clássico da Literatura universal!
Mas, como dizia Vergílio Ferreira, ler dá trabalho e este grande livro é um desses.
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