terça-feira, 4 de setembro de 2018

O QUE SE ESCREVE QUANDO JÁ A MORTE VEM SUBINDO A ESCADA


Apanhou a carta do chão, meteu-a no sobrescrito, escondeu-a entre os livros, mas não se há-de esquecer de procurar um sítio mais seguro, um dia destes vem Lídia fazer a limpeza, dá com a carta, e depois, é certo que ela, a bem dizer, não tem quaisquer direitos, se aqui vem a casa é porque a vontade lhe puxa, não porque eu lho peça, mas oxalá não deixe de vir, que mais queria Ricardo Reis, ingrato homem, meteu-se-lhe uma mulher na cama de seu livre gosto, assim não precisa de andar por aí arriscado a apanhar uma doença, há homens com muita sorte, e este ainda queixoso só porque não recebeu de Marcenda uma carta de amor, não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas, isto é o que se escreve quando já a morte vem subindo a escada, quando se torna de súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de amor. Diante do espelho do guarda-fato, que o reflecte em seu inteiro corpo, Ricardo Reis diz, Tens razão, nunca recebi uma carta de amor, uma carta que só de amor fosse, e também nunca escrevi uma carta de amor, nem por metade dela ou minha metade, esses inúmeros que em mim vivem, escrevendo eu, assistem, então a mão me cai, inerte, enfim não escrevo.

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