Apanhou a carta do chão, meteu-a no sobrescrito, escondeu-a entre os
livros, mas não se há-de esquecer de procurar um sítio mais seguro, um dia
destes vem Lídia fazer a limpeza, dá com a carta, e depois, é certo que ela, a
bem dizer, não tem quaisquer direitos, se aqui vem a casa é porque a vontade
lhe puxa, não porque eu lho peça, mas oxalá não deixe de vir, que mais queria
Ricardo Reis, ingrato homem, meteu-se-lhe uma mulher na cama de seu livre
gosto, assim não precisa de andar por aí arriscado a apanhar uma doença, há
homens com muita sorte, e este ainda queixoso só porque não recebeu de Marcenda
uma carta de amor, não esquecer que todas as cartas de amor são ridículas, isto
é o que se escreve quando já a morte vem subindo a escada, quando se torna de
súbito claro que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de
amor. Diante do espelho do guarda-fato, que o reflecte em seu inteiro corpo,
Ricardo Reis diz, Tens razão, nunca recebi uma carta de amor, uma carta que só
de amor fosse, e também nunca escrevi uma carta de amor, nem por metade dela ou
minha metade, esses inúmeros que em mim vivem, escrevendo eu, assistem, então a
mão me cai, inerte, enfim não escrevo.
José Saramago em O Ano da Morte de Ricardo Reis
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