Autópsia de um Mar de Ruínas
João de Melo
Capa: Manuel
Rosa
Assírio
&Alvim, Lisboa, Abril de 1984
Amor, eu não sei se dói. Caíu-me a arma das mãos e
ninguém a virá recuperar para as mãos que tomaram o meu lugar na guerra. O meu
último pulmão enche-se de uma agonia de corais, como quando os navios encalham
nas rochas. Sei que o gelo é um sinal. Mas nada me dói mais do que sentir que
as algas me enrolam. Revolvem-me no meio do lodo, com o tal derradeiro pulmão e
chafurdar no pântano das águas silenciosas. Sei que virão os médicos, os
helicópteros, o rosto tenso das aves com olheiras: alguém chamará pelo meu
nome, abre os olhos, respira fundo, respira fundo. Só não sabem que o pulmão
recebeu já a maré grossa das tripas e marulha numa cidade subterrânea. Abre pois
os olhos, a folha espessa encontrará o sol; respira fundo, pois, respira fundo,
para que não se atrevam as aves a pensar que estás pronto. Tens ainda um amor à
espera, Tens uma memória para acusar. Tens um grito para deixar escrito ao cimo
do mármore onde te vão gravar o nome: QUIS APENAS SEGUIR O CURSO DOS RIOS,
PASSAR A PÉ AS MONTANHAS DO MEU PAÍS. AGORA VAI MORRER UM HOMEM. VAI MORRER UM
PAÍS QUE MATOU UM MILHÃO E QUINHENTOS MIL HOMENS NA GUERRA. COMO SERÁ A SUA
MORTE?
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