segunda-feira, 28 de outubro de 2019

OLHAR AS CAPAS



Em Nome da Terra

Vergílio Ferreira
Capa: José Antunes
Círculo de Leitores, Lisboa, Março de 1991

Espera, deixa-me ver-te devagar. Dás uns passos, bates uma palmada no chão e sobes alto e lá no ar dás uma volta sobre ti, mas antes de caíres de pé, imóvel, fico a ver-te parada no ar. Corpo elástico, esguio, fico a ver-te. Flutuas imponderável, a Terra não tem razão sobre ti. Vejo-te no espaço, todo o corpo elástico numa curva dos pés até ao extremo das mãos, ou talvez não, recomeça o salto para ver melhor. Talvez o corpo não em prancha ao alto mas enrolado sobre si e giras no ar em rodízio até te desenrolares e caíres depois em pé firme. Queria dizer-te como isso me maravilhou, o teu corpo poderoso, desprendido das coisas, liberto da sua condição bruta, feito de um esplendor imaterial. Terei dito bem? Imaterial. Quanta coisa havia nele, os teus ossos, as tuas vísceras, mas tudo existia leve e eu só lhe via a sua forma perfeita de voo. Há uma órbita da exactidão como se diz dos astros e tu seguia-la, um rigor matemático com que o universo existe. Depois repetiste o exercício, suponho que era para «aquecer». Porque as barras assimétricas ficaram livres e tu foste para lá. Não gostei tanto e vou dizer-te porquê. Em todo o caso. Primeiro houve a corrida talvez para a barra mais alta, as pernas abertas para não embateres na mais baixa. Depois houve um bater de pernas juntas contra a barra mais baixa como uma barbatana. E por fim todo o corpo numa só peça rodou suspenso da barra mais alta e ficou um instante imóvel lá no alto. Ligeiro leve, Lá no alto, Depois rodou de novo, um deus fazia-o rodar no ar, Depois, como um macaco de galho em galho, o corpo veio para a barra mais baixa, voltou de novo para a mais alta. Depois rodou inteiro e aí veio em rodízio plantar-se imóvel no chão. Não gostei tanto, havia um macaco entremeado ao teu exercício, havia as pernas abertas descompostas ao mudares de barra, mas mesmo assim, como me entusiasmei. Bati palmas, elas ressoaram pelo espaço do Olimpo. Não fui bem eu que as bati mas o duplo de mim, não te sei explicar. As palmas foram à frente e eu já não as pude apanhar. Porque o homem, minha querida, tem sempre em si um outro de si e só num tarado é que os dois coincidem. Também não sabia bem porque o fiz, agora sei. Claro, havia a destreza, a perfeição da tua realização, mas agora sei que havia outra coisa. Queria dizer-te simplesmente que havia o teu corpo, mas não chega. Havia outra coisa – que coisa? Mónica, minha querida. Havia, deixa-me pensar. Ah, poder falar do teu corpo. Perder o pé da realidade. Fechar à volta uma cortina para que nada de ti me fugisse e ficar eu só diante de ti. Sinto agora alguém dentro de mim a perguntar e depois? que é que aconteceu? Sei lá o que aconteceu, quero lá saber. Quero é estar contigo no nada do tudo o que acontecer. Saturar-me da tua presença. E ver-te. E ver-te. Que importa o que «acontece»?

1 comentário:

" R y k @ r d o " disse...

Bom dia. Passando, lendo e gostando. Ler é um bálsoma para a alma.
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Votos de uma semana feliz.