quinta-feira, 31 de outubro de 2019

OLHAR AS CAPAS


Retalhos da Vida de um Médico

Fernando Namora
Capa e ilustrações de Manuel Ribeiro de Pavia
Editorial Inquérito, Lisboa s/d

Certa vez, chegou ali um homem rude, dos seus cinquenta anos, com as rugas da nuca e da face preenchidas por décadas de sujidade. Enquanto o observava, distraía-me a seguir a geografia dessas linhas de porcaria estratificada. Dei-lhe uma palmada nas costas, para o dispor bem, e disse:
 - Pode ficar internado, sim senhor. Vai tomar um banho, despir esse fato e entra já hoje para a enfermaria.
 - Banho, Senhor. Doutor?
 - Banho, pois… É o costume.
O homem levou as mãos às costas, coçou-as, indeciso e agastado.
 - Banho… – repetiu ele, em palavras – Banho, Sr. Doutor, é que não consinto. Não vejo de que me sirva para a minha doença.
 - Pois isso nada tem que ver com a sua doença, é verdade. Mas é do regulamento; é uma lei para si e para todos. . O banho e a mudança de roupa. Temos cá em baixo uma casa para guardar o fato dos doentes. Pode estar descansado que fica seguro.
O homem deu um passo para a saída e pegou no chapéu. Interpelei-o ainda:
 - Então o senhor não toma banho em sua casa?
 - Tomei, sim senhor, antes das sortes e antes do meu casamento. A gente não vai chapinhar na água toda a vez que se lembre. Está um homem sujeito a apanhar um catarral ou um resfriamento.
 - Qual resfriamento! Deixe-se disso e espere aí pelo criado.
Ele, embora reticente, acabou por conceder.
Dois dias depois coube-me a vez de prestar serviço na enfermaria dos homens. Numa das camas, o doente tinha a roupa arrepiada para a cabeça, como se tivesse frio. Peguei no dossier e perguntei ao enfermeiro:
 - Quem é este homem?
As mãos do doente afastaram os lençóis com brusquidão. E, de olhos injectados, vermelhos de febre e rancor, disse numa voz rouquejada, mal se percebendo as palavras:
 - Sou eu, senhor doutor! Tenho um catarral e é por sua culpa. Eu bem lhe disse que não se brinca com a água!
O homem teve realmente uma pneumonia.

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