Retalhos da Vida de um Médico
Fernando Namora
Capa e ilustrações de
Manuel Ribeiro de Pavia
Editorial Inquérito,
Lisboa s/d
Certa vez, chegou ali um homem rude, dos seus cinquenta anos, com as
rugas da nuca e da face preenchidas por décadas de sujidade. Enquanto o
observava, distraía-me a seguir a geografia dessas linhas de porcaria
estratificada. Dei-lhe uma palmada nas costas, para o dispor bem, e disse:
- Pode ficar internado, sim senhor. Vai tomar um banho,
despir esse fato e entra já hoje para a enfermaria.
- Banho, Senhor. Doutor?
- Banho, pois… É o costume.
O homem levou as mãos às costas, coçou-as, indeciso e agastado.
- Banho… – repetiu ele, em palavras – Banho, Sr.
Doutor, é que não consinto. Não vejo de que me sirva para a minha doença.
- Pois isso nada tem que ver com a sua doença, é verdade.
Mas é do regulamento; é uma lei para si e para todos. . O banho e a mudança de
roupa. Temos cá em baixo uma casa para guardar o fato dos doentes. Pode estar
descansado que fica seguro.
O homem deu um passo para a saída e pegou no chapéu. Interpelei-o
ainda:
- Então o senhor não toma banho em sua casa?
- Tomei, sim senhor, antes das sortes e antes do meu
casamento. A gente não vai chapinhar na água toda a vez que se lembre. Está um
homem sujeito a apanhar um catarral ou um resfriamento.
- Qual resfriamento! Deixe-se disso e espere aí pelo criado.
Ele, embora reticente, acabou por conceder.
Dois dias depois coube-me a vez de prestar serviço na enfermaria dos
homens. Numa das camas, o doente tinha a roupa arrepiada para a cabeça, como se
tivesse frio. Peguei no dossier e
perguntei ao enfermeiro:
- Quem é este homem?
As mãos do doente afastaram os lençóis com brusquidão. E, de olhos
injectados, vermelhos de febre e rancor, disse numa voz rouquejada, mal se
percebendo as palavras:
- Sou eu, senhor doutor! Tenho um catarral e é por sua
culpa. Eu bem lhe disse que não se brinca com a água!
O homem teve realmente uma pneumonia.
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