A Ordem Natural das Coisas
António Lobo
Antunes
Publicações Dom
Quixote, Lisboa, Novembro de 1992
Do mesmo modo que hoje a tua doença, Iolanda, me
surpreende, com as suas tremuras, os
seus desmaios, os seus suores, os seus cheiros de pétalas pisadas e a sua
subterrânea e intensa comunicação com a morte, que te envelhece por dentro como
se os órgãos, o coração, o estômago, o fígado, antiquíssimos e apodrecidos como
os dos heróis das criptas se descompuseram sob a vitoriosa juventude da pele,
também na época da minha infância, na Ericeira primeiro e na Calçada do Tojal
depois, os meus pais constituíam um absoluto mistério para mim. Nunca me
falavam deles, não existia uma fotografia sua entre as jarras de porcelana com
folhas de plátano, as molduras de militares e os ovais de prata com meninos de
triciclo sobre um fundo de giestas e bisavós reboludas, e eu imaginava-os a
viver em África ou em Macau, cercados de chineses diante de barcos de velas em
pergaminho encalhados na margem de um rio. Se depois do jantar, deitado na cama
sem conseguir dormir, escutava os cães de rebanho do Espanhol, sentia no vento
a baixa mar das suas vozes segredando-me conselhos que não podia entender. A
Dona Maria Teresa revirava em silêncio os olhos de lagosta, a Dona Anita
ralava-se com a minha magreza e oferecia-me bolachas que sabiam a cré, o meu
tio, o Senhor Fernando, piscava o olho às damas e falava do irmão major, o
Senhor Jorge, preso em Tavira por conspirar contra o Governo, num quartel junto
da praia em que o som dos cometas se humedecia de espuma. Aflige-me que tu,
nascida em Moçambique no ano da Revolução, não possas entender a época da minha
juventude em que os homens vestiam, ao domingo de manhã, a farda da Legião
Portuguesa e marchavam pelas ruas de Lisboa, preocupa-me, porque te afasta de
mim, que não tenhas conhecido as procissões, os hinos, os discursos, os cafés a
transbordarem de uniformes que gritavam canções guerreiras em torno de cálices
de conhaque, com funcionários da Polícia Política anotando em caderninhos os
suspeitos comunistas. Mesmo o Senhor Fernando, filho de um brigadeiro herói das
sublevações monárquicas, descia o tom da voz e considerava os agentes numa
espécie de respeito incomodado, esquecido das damas que se arregalavam,
extasiadas, de torrada na mão, para as condecorações dos patriotas. É que muito
antes de tu nasceres, Iolanda, numa cidade de gibóias, missionários e pretos,
Lisboa era um carrossel de milicianos orgulhosos e inúteis, de multidões de
cónegos, e de maçons a consumirem-se nos fortes do Estado, enquanto a mim, de
bivaque e calções, me iniciavam em rudimentos marciais no recreio da escola.
Lisboa, meu amor, eram missas radiofónicas,
altarzinhos de Santo António, mendigos e gaitas de beiços de cegos nas
esquinas, porque nunca encontrei tantos cegos como nessa época penosa, cegos
encostados aos prédios, cegos de concertina às costas tacteando passeios fora,
cegos trágicos à saída dos lausperenes, cegos fadistas acompanhados por
espertalhões de patilhas que recebiam as esmolas, cegos ameaçadores que vendiam
bugigangas no adro, cegos orgulhosos, de queixo altivo, nos cruzamentos das
ruas, mulheres cegas, com filhos cegos que não choravam nunca ao colo, cegos
bêbados às curvetas entre os palmitos das tabernas, cegos que se suspendiam no
ar, como anjos, dependurados dos guarda-chuvas abertos, cegos, pedintes e
ciganos em carroças gastas pelos mil caminhos do mundo, em busca de um baldio
para a tenda, mas principalmente cegos fitando o nada com a bruma das pupilas,
milhares de cegos ocupando os becos, as travessas, os largos, os pátios de
casinhas baixas com oficinas de sapateiros e ferradores, cegos a beberem água
no chafariz das mulas, cegos conversando entre si do seu mundo de sombras,
cegos, pedintes e ciganos nas quintas do Tojal, roubando o mel das abelhas,
legionários e cegos e as damas das pastelarias e polícias secretos e os brados
dos guerreiros de domingo, e eu a perguntar à minha tia O que é feito dos meus
pais?, e ela, sem interromper o crochet, a revirar os olhos, cegos a
tocarem-nos ao portão ou a vaguearem na relva, enganados na morada, e nesse
momento, querida,
cegos
escutei pela primeira vez, fazendo vibrar os
cálices, as folhas das plantas e o arbusto do meu sangue,
cegos
um ruído de passos no andar de cima.
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