domingo, 4 de dezembro de 2022

MOURIR POUR DES MÉMOIRES


 Nos meus velhos tempos de cinéfilo militante os filmes não acabavam quando aparecia no ecrã a palavra FIM e as luzes do cinema se voltavam a acender.

Continuavam a funcionar dentro de nós. 

Nesses tempos, em que ainda não tínhamos carro nem dinheiro para táxis, regressávamos a casa a pé ou de transportes públicos e tínhamos muito tempo para continuar a pensar naquilo que acabáramos de ver e para guardar bem dentro de nós o que mais havíamos admirado, fosse um plano, um pedaço do diálogo, a forma como a música se insinuava em determinadas cenas ou um simples sorriso da vedeta principal.

Com o decorrer dos anos ganhámos o hábito de ver mais de uma vez os filmes de que mais gostávamos.

E então, músicas, planos, sequências, rostos, sorrisos, diálogos, tudo isso ficava ainda mais enraizado dentro de nós.

Tínhamos as nossas cenas favoritas e ficávamos chateados quando elas se banalizavam… Os diálogos de Casablanca ou do Johnny Guitar, o final de “A Dama de Shangai” ou de “A Relíquia Macabra” e até aquela célebre tirada que toda a gente hoje não se cansa de repetir, mesmo que nunca tenha lido nada de Lampedusa nem visto um só filme de Visconti. 

Para não termos de os partilhar assim de forma tão generosa, guardávamos para nós outros pedaços de filme mais secretos que – esses sim…! – jurávamos que seriam só nossos, embora bem lá no fundo soubéssemos que isso não era verdade.

A memória dos filmes era tão ou mais importante do que os próprios filmes.

Quantas vezes adoçámos nós essa memória, vendo nos filmes coisas que julgávamos existirem, mas que, na verdade, não estavam lá…  O que sucedia é que, com o passar dos tempos, o filme que havíamos construído na nossa imaginação era bastante mais bonito do que aquele que, na realidade, existia, e daí a imensa desilusão que também resultou de algumas revisões.

Essa memória do Cinema vivia connosco em permanência e recorríamos a ela sempre que uma boa oportunidade se apresentasse.

Quantas vezes em jantares de amigos, quando a noite já ia alta e a música e o fumo dos charutos ameaçavam ocupar, em definitivo, o espaço das vozes, alguém se lembrava de perguntar: lembram-se deste filme…?

E lá partíamos então para outros voos: grandes policiais, comédias, filmes de aventura, coboiadas e filmes de amor, onde a Sissi se misturava com o Errol Flynn,  “O Comboio Apitou Três Vezes” com “As Noites Loucas do Dr Jerryll”,  Woody Allen com Rita Hayworth ou  o Bogart com Connie Stevens, para tudo vir desaguar, quase sempre, nos olhos azuis do Paul Newman…   

Pois é precisamente essa memória do Cinema que agora se me esvai, lentamente…

Se ainda vou conseguindo manter no “disco rígido” a maior parte dos bons filmes que vi há muitos anos atrás, os que visitei mais recentemente varrem-se-me completamente e nem sequer o nome dos realizadores consigo, na maior parte das vezes, fixar.

Bem sei que a consciência de que a visita da velha senhora está cada vez mais próxima me faz ver demasiados filmes em cada dia que passa… Dois é rotina, e três ou quatro coisa muito frequente…

Mas sempre vi demasiados filmes no passado, e nunca os esqueci…

À noitinha, para conseguirem adormecer mais rapidamente, há quem conte carneiros, quem pense em mulheres nuas, quem antecipe o prazer de festas benfiquistas no Marquês...

Eu não penso em nada disso….

Estendido na cama, dou comigo a tentar recordar-me de todos os filmes que vi nos últimos dias.

Se me conseguir lembrar da maioria já será uma pequena vitória.

Depois tento recordar-me, não de uma qualquer parte do diálogo ou de um determinado plano em particular, mas da própria história do filme, aquela coisa simples a que os americanos chamam “plot”…

E aí começa o verdadeiro drama…

Às vezes, com muito esforço de memória, consigo recordar-me de uma ou de outra cena e, a partir daí, reconstituir a totalidade da história.  Mas amiúde não me consigo recordar de absolutamente nada, o que me deixa siderado…  Se o acesso a esses filmes ainda se encontra ao meu alcance, muitas vezes acontece-me pô-los de novo a passar, e aí, terminado o genérico e iniciado o filme, vem-me quase sempre tudo de supetão.

Significa isto que, para mim, o filme deixou de poder funcionar no final do filme…

Deixou de haver memória…

Não haverá mais música, mais planos, mais diálogos para mais tarde recordar.

Fica o vazio.

Com sorte recordar-me-ei de ter visto o filme. Mas mais nada…

A minha Querida Mulher – carinhosa como só ela o sabe ser – diz-me que serão, muito provavelmente, os primeiros sintomas do Alzheimer…

Talvez ela tenha razão e por isso mesmo apareci hoje aqui para vos contar…

Para que um dia, quando eu já não vos conseguir sequer reconhecer, vocês se recordem que eu não fui apanhado de surpresa.

Que dei pela coisa e até vos contei… 

 

PS:

O título foi parcialmente roubado a Georges Brassens, que tem uma canção que se chama “Mourir Pour Des Idées”

Colaboração de Luís Miguel Mira

Legenda: Jack Nicholson e Kathleen Turner no filme A Honta dos Padrinhos de John Huston.

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