terça-feira, 6 de dezembro de 2022

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


José Saramago não gostava do Natal. Tão pouco de festas de aniversário.

Talvez reflexo de uma infância e de uma adolescência muito difíceis o Natal, para Saramago, não foi um toque de mágica. 

Deixou escrito numa crónica; para incréus empedernidos como eu, o caso não tem assim tanta importância: é mais uma das trezentas mil datas assinaladas de que se servem inteligentemente as religiões para aferventar crenças que no passar do tempo se tornariam letra morta e água chilra

De uma maneira seca, quase definitiva, finalizou um poema: É dia de Natal. Nada acontece.

Podia ser Natal e não ser farsa, como escreveu António Manuel Ribeiro numa canção dos “UHF”.

Na obra lida de José Saramago, encontrei três abordagens ao Natal.

O poema Natal em Os Poemas Possíveis,  a crónica A Neve Preta em Deste Mundo e do Outro e outra crónica em A Bagagem do Viajante que, precisamente, intitulou Natalmente crónica.

Tenho conhecimento que na revista “Colóquio/Letras” nº 151/152, Fevereiro 2000, totalmente dedicada a José Saramago, está publicado um conto inédito: Natal.

Fica aqui o excerto de A Neve Preta que consta do livro de crónicas Deste Mundo e do Outro:

«Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?

Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus rostos frescos, que nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio, que são irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos impacientes, nervosos, porque estamos diante de uma espécie desconhecida... Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se não tenho razões para insistir: é preciso cuidado com as crianças... Não o cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que todos nós passámos. De repente... Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu...»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?»

José Saramago em Deste Mundo e do Outro, página 189.

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