sábado, 24 de dezembro de 2022

O CORREIO DA NOITE


 Num livrinho intitulado «As Estações da Vida» de Agustina Bessa-Luís, encontramos estas palavras:

«O comboio sempre me pareceu ter qulauqr coisa de profético. Abria-se a portinhola duma carruagem e imediatamente se abria na imaginação um processo romanesco. Tratávamos de divisar os passageiros e explorar a réstea de conforto que podíamos partilhar. Era o prelúdio duma viagem que podia ser o primeiro capítulo duma história.»

Na Biblioteca da Casa há uma antologia de contos de Natal, publicado em 1978.

Nele se encontram tres contos de Agustina Bessa Luís.  Escolhemos «O Correio da Noite», uma história maravilhosa.

 «Em 1934, passámos a véspera de Natal num velho vagão onde viajavam três cães perdigueiros, um hortelão de frades e uma criada de servir, a Rata, que estreava uma peineta nova, dessas que havia com aplicações de turquesa fingida. Não havia transportes e, pouco antes da meia-noite, meu pai lembrou-se de visitar a família, que não era numerosa e por isso lhe dava pena deixá-la, à ceia, na vasta mesa toda mordida por golpes de canivete que até parecia obra de talha. Sujeitámo-nos pois àquela viagem no correio da noite que, além do mais, ia cheio até aos tejadilhos. Alguns preferiram o furgão; levava caixotes de passas de Alicante e uma urna para um morto, coberta com um pano encerado, como se fosse destinada aos abismos do oceano. A Rata persignava-se e rezava umas estropiadas letanias que ela sabia. O hortelão, o Miguel Cunha, era da minha terra – o maior mentiroso, o mais famoso gastador de petas lá do sítio. Nunca vi tal arte feiticeira, tal cordura bem-falante em tecer fantasias. Aos poucos, íamos com ele na legenda dos assuntos e, se um céptico nos cortasse o passo, éramos como mastins sobre a sua lucidez idiota. Porque ao pé do Miguel Cunha, tão generoso a contar-nos novelas, casos tortos, extraordinárias missões do bicho homem, todos os outros eram tolos e leigos no sentimento de urdir a vida.

O comboio, na noite clara, soltava fagulhas verdes e douradas. Víamos o rasto delas pelas portas que iam meio abertas. Eu tinha nesse ano umas luvas de lã de punhos altos, de alpinista, e os dedos estavam vidrados pelo frio.

- Ah, lembra-me isto uma passagem que se deu em Argabiça – disse Miguel, na sua vozinha refilona e alegre. Eu pensei para mim: Temos espanholada. E a Rata interrompeu o seu piedoso discurso de Electra sobre a urna, para se arrumar comodamente entre as caixas de passas. Era uma rapariga a jeito de escultura Maya – estou a vê-la, um ar maciço, fecundo e antigo; os brincos de ouro tinham crostas de cera verde. – Os de Argabiça tinham uma fábrica de urnas – continuou Miguel. – E eram famosos por isso. Mandavam-nas para o Brasil, a direito pelo mar dentro, atadas com sogas umas às outras. E levavam seis dias e poucas horas a lá chegar. Seguiam as correntes; não saltavam as ondas, iam a par delas. Isto poupava-lhes muitas léguas. Eu andava nas podas, que não sou de Argabiça, mas um migalho mais acima. Dois moços chegaram-se a mim e desafiaram-me: Queres tu vir ao Pará? – Quero – disse eu. Pendurei a tesoura no cinto e meti-me com eles nos caixões, que era a nossa maneira de embarcar. O mar estava lesto, e o coração do mar batia como um sino. Ouvíamos cantar as sereias, e os filhos delas corriam no fio do cachão sem se afundarem. Chegámos ao Brasil aí pela noite do Ano Bom; a praia estava cheia de velinhas que alumiavam o mar, e as pretas traziam flores e atiravam-nas à água.

- Cala-te, fardeleiro, que te não posso ouvir! – disse a Rata. Desatou com fúria o nó do cabelo e voltou a torcê-lo.

- Eu morra se não falo verdade! – Os olhinhos amarelos do Miguel Cunha, a sua voz cantarina, o cabelo turdilho que ele já tinha, a pequena figura rabina, tudo se me pregou na memória. E o tambalear do vagão nos trilhos naquela noite de alto céu sem bruma.

- Enredas bem os teus enredos – disse meu pai, entre maravilhado e distraído.

- Que falo certo, e isso não me pesa… Tenho como testemunha um cafezal que podei com a minha tesoura antes de vir embora. Ainda lá está o cafezal. E no último pé botei-lhe duas letras, que foram um A e um B. Não era Ano Bom, não era nada disso. Era Adeus Brasil. Assim a luz do sol me alumie, como não foi aparença.

- Eu fio-me – tornou a Rata, moída de ronha, cega. – Olha que pecas! Olha que pecas!

Eu tive de repente medo. Quem viajava comigo naquele escuro lugar? Viam-se os pinheiros e os postes desenhados no claro da lua. Os fechos de cobre da urna tremiam levemente. Àquela hora, em casa, já a ceia tinha sido servida; e os gatos mediam a própria sombra, com elásticos passos, depois dum banquete de espinhas. Não havia presépio; só um Cristo de barro dentro dum fanal, com cravos nas mãos, pintados de purpurina. Eu não recebia presentes – era demasiado pueril e até um pouco ridículo dar presentes a quem se ama. O amor não se comemora. E o Natal até era mais belo quando era obscuro e quase inesperado no decurso dos dias sem história. Perguntei lá em casa:

- O Miguel Cunha mente muito?

- Como uma cesta rota.

Abstive-me de perguntar se ele era um pecador. E toda a vida guardei aquela porfia de alma de ir ao Brasil, conhecer o cafezal onde ficaram gravadas as letras tabeliónicas desse noveleiro, que foi criado de convento e podador em Argabiça»

 

Legenda:  «Le Train dans la Neige», pintura de Claude Monet

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