Num livrinho intitulado «As Estações da Vida» de Agustina Bessa-Luís, encontramos estas palavras:
«O comboio sempre me pareceu ter qulauqr coisa de
profético. Abria-se a portinhola duma carruagem e imediatamente se abria na
imaginação um processo romanesco. Tratávamos de divisar os passageiros e
explorar a réstea de conforto que podíamos partilhar. Era o prelúdio duma
viagem que podia ser o primeiro capítulo duma história.»
Na Biblioteca da Casa há uma antologia de contos de
Natal, publicado em 1978.
Nele se encontram tres contos de Agustina Bessa Luís. Escolhemos «O Correio da Noite», uma história
maravilhosa.
O comboio, na noite clara, soltava fagulhas verdes e douradas. Víamos o
rasto delas pelas portas que iam meio abertas. Eu tinha nesse ano umas luvas de
lã de punhos altos, de alpinista, e os dedos estavam vidrados pelo frio.
- Ah, lembra-me isto uma passagem que se deu em Argabiça – disse
Miguel, na sua vozinha refilona e alegre. Eu pensei para mim: Temos espanholada. E a Rata interrompeu
o seu piedoso discurso de Electra sobre a urna, para se arrumar comodamente
entre as caixas de passas. Era uma rapariga a jeito de escultura Maya – estou a
vê-la, um ar maciço, fecundo e antigo; os brincos de ouro tinham crostas de
cera verde. – Os de Argabiça tinham uma fábrica de urnas – continuou Miguel. –
E eram famosos por isso. Mandavam-nas para o Brasil, a direito pelo mar dentro,
atadas com sogas umas às outras. E levavam seis dias e poucas horas a lá
chegar. Seguiam as correntes; não saltavam as ondas, iam a par delas. Isto
poupava-lhes muitas léguas. Eu andava nas podas, que não sou de Argabiça, mas
um migalho mais acima. Dois moços chegaram-se a mim e desafiaram-me: Queres tu vir ao Pará? – Quero – disse eu. Pendurei a
tesoura no cinto e meti-me com eles nos caixões, que era a nossa maneira de
embarcar. O mar estava lesto, e o coração do mar batia como um sino. Ouvíamos
cantar as sereias, e os filhos delas corriam no fio do cachão sem se afundarem.
Chegámos ao Brasil aí pela noite do Ano Bom; a praia estava cheia de velinhas
que alumiavam o mar, e as pretas traziam flores e atiravam-nas à água.
- Cala-te, fardeleiro, que te não posso ouvir! – disse a Rata. Desatou
com fúria o nó do cabelo e voltou a torcê-lo.
- Eu morra se não falo verdade! – Os olhinhos amarelos do Miguel Cunha,
a sua voz cantarina, o cabelo turdilho que ele já tinha, a pequena figura
rabina, tudo se me pregou na memória. E o tambalear do vagão nos trilhos
naquela noite de alto céu sem bruma.
- Enredas bem os teus enredos – disse meu pai, entre maravilhado e
distraído.
- Que falo certo, e isso não me pesa… Tenho como testemunha um cafezal
que podei com a minha tesoura antes de vir embora. Ainda lá está o cafezal. E
no último pé botei-lhe duas letras, que foram um A e um B. Não era Ano Bom, não
era nada disso. Era Adeus Brasil. Assim a luz do sol me alumie, como não foi
aparença.
- Eu fio-me – tornou a Rata, moída de ronha, cega. – Olha que pecas!
Olha que pecas!
Eu tive de repente medo. Quem viajava comigo naquele escuro lugar? Viam-se
os pinheiros e os postes desenhados no claro da lua. Os fechos de cobre da urna
tremiam levemente. Àquela hora, em casa, já a ceia tinha sido servida; e os
gatos mediam a própria sombra, com elásticos passos, depois dum banquete de
espinhas. Não havia presépio; só um Cristo de barro dentro dum fanal, com
cravos nas mãos, pintados de purpurina. Eu não recebia presentes – era
demasiado pueril e até um pouco ridículo dar presentes a quem se ama. O amor
não se comemora. E o Natal até era mais belo quando era obscuro e quase
inesperado no decurso dos dias sem história. Perguntei lá em casa:
- O Miguel Cunha mente muito?
- Como uma cesta rota.
Abstive-me de perguntar se ele era um pecador. E toda a vida guardei
aquela porfia de alma de ir ao Brasil, conhecer o cafezal onde ficaram gravadas
as letras tabeliónicas desse noveleiro, que foi criado de convento e podador em
Argabiça»
Legenda: «Le
Train dans la Neige», pintura de Claude Monet
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