sábado, 3 de dezembro de 2022

CONVERSANDO


 Como é possível certas coisas me terem acontecido…

Alguns livros de Aquilino Ribeiro existiam na Biblioteca da Casa.

Sim, Aquilino não é fácil mas a leitura também tem de ser constituída por autores e livros que requerem trabalho. Como um Sublinhado Saramaguiano aqui deixado na passada semana:

«Falta-nos reflexão, pensar, precisamos do trabalho de pensar, e parece-me que, sem ideias, não vamos a parte nenhuma».

Lembro-me que o único livro de Aquilino que comprei foi A Casa Grande Romarigães.

A lápis, no canto superior direito da 1º página, o livreiro escreveu: 45$00. Mas não passei da página 54. Sei isto porque, naquele tempo, os livros não se vendiam com as folhas guilhotinadas, tinham de ser abertos com uma faca («De repente senti saudade da velha ferramenta do jovem leitor que fui. A faca de papel. A ferramenta fora de uso morre. A faca de papel, belo objecto, está a desaparecer. E com ele talvez certa leitura via Jorge Listopad em Secos e Molhados) e a minha tarefa ficou-se por essa página. Havia quem comprasse os livros e os abrisse de uma vez só. Eu gostava de ir abrindo à medida que os ia lendo.

Terá sido a velha história: chateei-me de ler tanta palavra que desconhecia, e, numa de preguiça literária, cansei-me da necessidade de tanto ter que pegar no Dicionário.

Tem um bonito começo:

O Vento, que é um pincha-no-crivo devasso e curioso, penetrou na camarata, bufou, deu um abanão. O estarim parecia deserto. Não senhor, alguém dormia meio encurvado, cabeça para fora no seu decúbito, que se agitou molemente. Volveu a soprar. Buliu-lhe a veste, deu mesmo um estalido em sua tela semi-rígida e imobilizou-se. Outro sopro. Desta vez o pinhão, como um pretinho da Guiné de tanga a esvoaçar, liberou-se da cela e pulou no espaço. Que pára-quedista!

E o livro termina assim:

«Mata fora as aves cantavam e recantavam. Hilário, cabeça dobrada para a terra, pois lá reside o segredo do mundo que mais imediatamente se propõe à especulação da nossa inteligência, dizia consigo: - Está dito, tudo morre e tudo volta. Reparo que uma força criadora, decerto instilada do Sol, palpita de modo tão intenso que o sentimento da velhice no homem se torna de uma tristeza funérea e confrangedora. É pena que se não possa regular a vida como um relógio, andando com os ponteiros para diante e para trás segundo a nossa conveniência. Como eu faria da Quinta do Amparo um jardim maravilhosos, a minha instância de contemptor do Mundo, e de Nossa Senhora, esta doce imagem de faces bochechudinhas, minha amiga do coração?! A Primavera, tantas vezes rebelde ao calendário, rejuvenesce tudo menos o homem. As leis da ciclidade física assim o mandam. Para o ano, por esta altura, voltarão as aves a cantar. Que chova, que faça um sol radioso, com o mundo vegetal pletórico de seiva ou mais aganado, à triste planta humana é que nada a afasta da sua carreira para a morte. Será ela a obra-prima da Criação ou a pior de todas?»

Tudo isto é tão bonito e tão diferente.

É sempre tarde quando se chora, ou talvez as «leis da ciclidade» de que fala Aquilino.

Certo que já não sou o jovem que então desistiu de Aquilino, e de o não lido como devia, muito me lamento.

Ao ponto de ter folheado hoje «Abóboras no Telhado» e acabar por ler esta maravilha:

«Já o escrevi e apraz-me repeti-lo: na Mitra ou em Rilhafoles, não sei ao certo, estava um sujeito que rompeu a reivindicar a autoria de livros que correm com o meu nome. Ele teria carpintejado os livros e eu teria cometido a feia acção de por dolo ou extorsão haver-me apropriado deles. Era com tal ou qual dialéctica que sustentava a suposta paternidade. E, tendo-lhe alguém objectado como é que poderia ter escrito os livros sendo analfabeto, respondeu: Ora essa, eu dito, o Espírito-Santo escreve.

Uma tia que tive, boa e religiosa alma que sempre recordo com saudade, explicava a minha pretendida fecundidade quase da mesma maneira: o Espírito-Santo dita, ele escreve.»

2 comentários:

Tintinaine disse...

Fiquei admirado com o facto de não apreciar o modo de escrever do Aquilino e amar o de Saramago! A minha reacção foi o contrário!

Sammy, o paquete disse...

Obrigado pelas suas palavras.
Receio que a minha prosa não tivesse sido explícita.
Num tempo em que não havia televisão, quase nada para um garoto se distrair (nasci em 1945), desatei a pegar nos livros que existiam na Biblioteca da Casa e li o que li sem nenhuma orientação e tanto o meu pai como o meu avô não se preocuparam porque entendiam que o importante é ler. Aquilino, que não é de leituras fáceis entrou nesse carrossel livresco e foram inúmeras as dificuldades que levaram à desistência. E, como escrevi, lamento imenso que essa desistência tenha acontecido. Agora, parafraseando o Manuel António Pina, não é o fim nem o princípio do mundo, é apenas um pouco tarde.
A descoberta de José Saramago é uma outra história diversas vezes por aqui contada.