quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

O NATAL COMO TEMPO DE SOLIDÃO


 

Em tempo  de Natal volto  à Biografia de Manuel António Pina escrita por Álvaro Magalhães: Para QuêTudo Isto?

 Manuel António Pina nasceu a 18 de Novembro de 1943.

Tempos difíceis. Como escreve Álvaro Maglhães:

«Estávamos então em plena Segunda Guerra Mundial e o governo acabar de instituir o racionamento de produtos essenciais e de lançar um despacho que obrigava à diminuição ds salários. As condições de vida dos mais pobres, que já eram deploráveis, degradaram-se bastante, o que geraria marchas de fome e greves de trabalhadores. As próprias filas do racionamento eram focos latentes de revolta.»

 Por isto ou por o que tenha sido, o Natal sempre entristeceu Manuel António Pina. Apenas a construção do presépio o animava. Mas com alguns problemas porque os pais não lhe compravam outros bonecos:  «O Menino jazia deitado num ninho de pintarroxo; a vaca e o burro eram desproporcionados em relação ao tamanho do menino e o Rei Mago preto tinha-se partido noutro Natal e, no seu lugar, estava agora um jogador do Sporting, com bola e tudo!»

Numa crónica datada de 2005 escreveu:

Como a infância o Natal é algo que só podemos ter quando o perdemos. Quando somos crianças, o Natal próximo de mais, e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como construímos um presépio: com pedaços) o torna verdade. E só a memória nos permite saber, enfim, algo essencial, que o Menino na manjedoura éramos nós.»

 Mas numa crónica, publicada na Visão de 26 de Novembro de 2002, o Pina deixa escorrer a tal solidão natalícia que lhe acompanhou a vida. Intitula-se a crónica «Provavelmente Natal»:   

 «Há algo de cerimonioso no Natal que irrita e seduz: a iconografia kitsch, a simbologia (no entanto vasta: um deus nascendo, menino, entre os homens e, ao mesmo tempo, um homem nascendo humanamente entre os deuses, um vértice vertiginoso em que, por um momento, divindade e humanidade se tocam) reduzida à extrema literal idade por séculos de púlpito, o comércio dos presentes.

E o melancólico ritual das crónicas natalícias. Em mais de trinta anos de jornais, devo ter escrito, pelo menos, duas dúzias delas. E de todas as vezes me sentei diante da máquina de escrever (agora diante do insondável écran do computador) com a inquieta sensação de ter sido, também eu, apanhado (e como poderia não o ser?) numa amável armadilha.

Rubem Braga repetiu uma vez no Cruzeiro uma crónica que já publicara antes, justificando-se com a desconcertada circunstância de Van Gogh não ter pintado os Girassóis (cito de cor, os exemplos podem ter sido outros) para serem olhados apenas uma vez, nem Beethoven composto a Pastoral para uma única audição. Fosse eu Rubem Braga e, provavelmente, escreveria hoje, de novo, uma crónica já longínqua intitulada «Os dois natais». Assim resta-me a memória.

Porque tudo é memória. Alguém – talvez eu, mas quem? – lembrando-se de mim. A mãe, na cozinha, fazia os fritos e eu punha a mesa. Do candeeiro da sala pendiam fitas douradas e estrelas de papel de lustro e tínhamos colocado raminhos de azevinho nos espelhos do louceiro. No presépio, minuciosamente construído com musgo, serradura, algodão em rama, palhinhas, faltava o rei mago preto, que caíra e se quebrara no ano anterior, e, no seu lugar, avultava insolentemente, por birra do meu irmão mais novo, um jogador do Sporting, com bola e tudo!

Em que lugar o passado permanece imovelmente passado, passando para sempre? Quem, como num sonho, se lembra agora de tudo isto?

O Natal era então tempo de solidão. Uma brevíssima eternidade parava, sem eu saber, a meu lado, muito perto de mim, tão perto que quase podia tocá-la. E, contudo, ocultamente e culpadamente, como se pecasse, eu sentia-me infeliz sem motivo. Às vezes fechava-me no quarto a chorar em silêncio, até que a mãe vinha bater à porta chamando para o jantar. Depois, à meia-noite, abria um a um os coloridos embrulhos dos presentes, pressentindo confusamente que, ao recebê-los, os perdia para sempre. Da mesma forma inconcreta como o Natal e eu próprio nos perdíamos também.

Por alguma grande razão me recordo destas coisas. Ou se recordam elas de mim: a mãe, a sala, a toalha bordada sobre a mesa, o cão ladrando lá fora no quintal. Talvez, quem sabe?, seja preciso arrancar as raízes, «cortar a árvore, fazer uma cruz e levá-la às costas». Talvez seja preciso criar raízes na ausência de tudo. Mas para que?, para que?

Hoje sinto-me como um intruso nesse secreto Natal infantil passado. As minhas palavras perturbam o seu silêncio, o meu olhar cega-o, a minha memória afasta-o irremediavelmente de mim. Dele apenas imagens dispersas ficaram: fitas, estrelas, figurinhas de barro. O resto já não me pertence. Ou (como posso sabê-le?) pertence-me num sítio que já não me pertence. E onde não me é dado, nem às minhas palavras, alcançar.»

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