Em tempo de
Natal volto à Biografia de Manuel
António Pina escrita por Álvaro Magalhães: Para QuêTudo Isto?
Tempos difíceis. Como escreve Álvaro Maglhães:
«Estávamos então em plena Segunda Guerra Mundial e o
governo acabar de instituir o racionamento de produtos essenciais e de lançar
um despacho que obrigava à diminuição ds salários. As condições de vida dos
mais pobres, que já eram deploráveis, degradaram-se bastante, o que geraria
marchas de fome e greves de trabalhadores. As próprias filas do racionamento
eram focos latentes de revolta.»
Por isto ou por
o que tenha sido, o Natal sempre entristeceu Manuel António Pina. Apenas a construção
do presépio o animava. Mas com alguns problemas porque os pais não lhe compravam
outros bonecos: «O Menino jazia deitado
num ninho de pintarroxo; a vaca e o burro eram desproporcionados em relação ao
tamanho do menino e o Rei Mago preto tinha-se partido noutro Natal e, no seu
lugar, estava agora um jogador do Sporting, com bola e tudo!»
Numa crónica datada de 2005 escreveu:
Como a infância o Natal é algo que só
podemos ter quando o perdemos. Quando somos crianças, o Natal próximo de mais,
e real de mais, para ser verdadeiro. Só a memória (e a memória construímo-la como
construímos um presépio: com pedaços) o torna verdade. E só a memória nos
permite saber, enfim, algo essencial, que o Menino na manjedoura éramos nós.»
Mas numa crónica,
publicada na Visão de 26 de Novembro de 2002, o Pina deixa escorrer a tal
solidão natalícia que lhe acompanhou a vida. Intitula-se a crónica «Provavelmente Natal»:
E o melancólico ritual das crónicas natalícias. Em mais de trinta anos
de jornais, devo ter escrito, pelo menos, duas dúzias delas. E de todas as
vezes me sentei diante da máquina de escrever (agora diante do insondável écran
do computador) com a inquieta sensação de ter sido, também eu, apanhado (e como
poderia não o ser?) numa amável armadilha.
Rubem Braga repetiu uma vez no Cruzeiro uma crónica que já publicara antes,
justificando-se com a desconcertada circunstância de Van Gogh não ter
pintado os Girassóis (cito
de cor, os exemplos podem ter sido outros) para serem olhados apenas uma vez,
nem Beethoven composto a Pastoral para
uma única audição. Fosse eu Rubem Braga e, provavelmente, escreveria hoje, de
novo, uma crónica já longínqua intitulada «Os dois natais». Assim resta-me a
memória.
Porque tudo é memória. Alguém – talvez eu, mas quem? – lembrando-se de
mim. A mãe, na cozinha, fazia os fritos e eu punha a mesa. Do candeeiro da sala
pendiam fitas douradas e estrelas de papel de lustro e tínhamos colocado
raminhos de azevinho nos espelhos do louceiro. No presépio, minuciosamente
construído com musgo, serradura, algodão em rama, palhinhas, faltava o rei mago
preto, que caíra e se quebrara no ano anterior, e, no seu lugar, avultava
insolentemente, por birra do meu irmão mais novo, um jogador do Sporting, com
bola e tudo!
Em que lugar o passado permanece imovelmente passado, passando para
sempre? Quem, como num sonho, se lembra agora de tudo isto?
O Natal era então tempo de solidão. Uma brevíssima eternidade parava,
sem eu saber, a meu lado, muito perto de mim, tão perto que quase podia
tocá-la. E, contudo, ocultamente e culpadamente, como se pecasse, eu sentia-me
infeliz sem motivo. Às vezes fechava-me no quarto a chorar em silêncio, até que
a mãe vinha bater à porta chamando para o jantar. Depois, à meia-noite, abria
um a um os coloridos embrulhos dos presentes, pressentindo confusamente que, ao
recebê-los, os perdia para sempre. Da mesma forma inconcreta como o Natal e eu
próprio nos perdíamos também.
Por alguma grande razão me recordo destas coisas. Ou se recordam elas
de mim: a mãe, a sala, a toalha bordada sobre a mesa, o cão ladrando lá fora no
quintal. Talvez, quem sabe?, seja preciso arrancar as raízes, «cortar a árvore,
fazer uma cruz e levá-la às costas». Talvez seja preciso criar raízes na
ausência de tudo. Mas para que?, para que?
Hoje sinto-me como um intruso nesse secreto Natal infantil passado. As
minhas palavras perturbam o seu silêncio, o meu olhar cega-o, a minha memória
afasta-o irremediavelmente de mim. Dele apenas imagens dispersas ficaram:
fitas, estrelas, figurinhas de barro. O resto já não me pertence. Ou (como
posso sabê-le?) pertence-me num sítio que já não me pertence. E onde não me é
dado, nem às minhas palavras, alcançar.»
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