O Germano é um velho amigo, puro transmontano de uma aldeia perto de Montalegre. Foi graças a ele que comi as melhores alheiras que trinquei, eram feitas por uma tia que, por caseiras que eram, não originavam grandes quantidades mas as pouquíssimas que chegavam a Lisboa originavam um longo jantar com muitas hortaliças e chouriças diversas, e arrastadas conversas.
Em muitas dessas
conversas falava-se de chegas de bois e o Germano dissertava sobre esse tão
velho costume das gentes para lá do Marão.
Um dia, relendo os
Diários de Miguel Torga, no seu volume IX, encontrei este texto, datado de
Montalegre, 11 de Janeiro de 1970:
«Avisado por um
amigo de que havia hoje cá na terra uma chega de toiros, meti-me a caminho debaixo dum temporal
desfeito, e tanto teimei com a chuva, o vento e o granizo, que consegui chegar
a horas de assistir ao combate. E valeu a pena. Se há em Portugal meia dúzia de
espectáculos que merecem ser vistos, este é um deles. Primeiro, as bichezas,
depois de nove voltas propiciatórias à capela do orago e da sanção da bruxa, a
sair dos respectivos lugarejos, rodeados pela juventude dos dois sexos,
enquanto o sino toca a Senhor fora e o mulherio idoso reza implorativamente aos
pés do Santíssimo; a seguir, a chegada dos cortejos ao Toural da vila, as
cerimónias preliminares do encontro – vistoria rigorosa dos animais (não tragam
eles pontas de aço incrustadas nos galhos), a escolha do piso, dar o que pode,
no esforço hercúleo de não perder um palmo de terreno, ou ganhá-lo apenas cedido. Turra que dura eternidades de
emoção, e só termina quando uma das bisarmas fraqueja, recua, e acaba por fugir.
Não é, contudo, a luta gigantesca, apesar de empolgante, o que mais diz ao espectador forasteiro. É o halo humano que a envolve, os milénios de ancestralidade que ela faz vir à tona da assistência. Símbolo de virilidade e fecundidade, o boi é na região o alfa e o ómega do quotidiano. Cada povoado revê-se nele como num deus. Vitorioso, cobrem-no de flores; derrotado, abatem-no impiedosamente. Quando há minutos a turra acabou, depois de a viver numa tensão de que a palidez de um padre a meu lado era a síntese, toda a falange que torcia pelo vencido parecia capada.»
No Natal de 2013 o Germano ofereceu-me esta
Antologia para que eu percebesse melhor o que é isso das chegas de bois.
São antologiados os seguintes autores:
José Viale Moutinho, Manuel Lopes Gonçalves Garcia, Barroso da Fonte, Frei Damian E. Neira, Miguel Torga, Mário Ventura Henriques, António Lourenço Fontes, Bento da Cruz, Carvalho de Moura, Paula Bordalo Lema, Ferreira de Castro, João Martins Rodrigues, Dias Vieira, Artur Maria Afonso, Carvalho de Moura, Manuel F. Ramos, Júlio Montalvão Machado, Fernando Moura, José Dias Baptista Sant’anna Dionísio, António Cabral.
«Em vésperas de chega, os touros contendores são o fulcro das atenções por parte das aldeias a que pertencem. Os homens guardam-nos dia e noite, para evitar que sejam alvos de qualquer atentado – que tanto pode ser físico como incorpóreo. Nunca se sabe que mezinhas podem ser dadas a um animal, a fim de o incapacitarem para a luta que se avizinha.» (Mário Ventura Henriques)
«Um barrosão diria
assim: um boi, para ser boi, há-de ter duas qualidades – pintar bem e turrar melhor.
Por «pintar bem»,
entende-se: crias fortes e bonitas.
Por «turrar melhor»:
campeão de chegas.
Se não puder reunir
os dois quesitos, ao menos que seja um campeão orgulho da comunidade.»
(Bento da Cruz).
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