segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

OUTROS NATAIS


Anos 50,60.

Pelo Natal, vendiam-se perus em alguns locais de Lisboa. 

Lembro-me dessas vendas no Martim Moniz e o que a fotografia mostra é uma venda no Largo de São Domingos.

Em casa do meu pai não se compravam os perus em Lisboa. Íamos ao Lavradio, quando, desde o Lavradio até à Baixa da Banheira, tudo aquilo eram quintas. Hoje tudo aqui são florestas e florestas de cimento.

Aqui se reproduz a aventura de comprar perus no Lavradio.

Um texto publicado neste blogue no dia 19 de Dezembro de 2012:


«Tenho dos meus tempos de miúdo, a lembrança de ver, por estes dias de Natal, no Martim Moniz, dezenas de alentejanos a venderem perus.

Ramalho Ortigão escreve no V volume de As Farpas:

«Lisboa prepara neste momento a festa de Natal.

Grandes rebanhos de perus, enrabeirados de lama, espalham no macadame as suas manchas movediças e escuras, de reflexos de aço adornadas de florescências brancas e vermelhas dos moncos. Pessoas idóneas pastoreiam esses galináceos, guiando-os a golpes de cana por entre as rodas dos trens e por entre as pernas dos viandantes. Na compra destes perus convém escolher os mais teimosos: à força de Cana são esses os mais tenros.»

A minha avó não comprava o peru no Martim Moniz.

Um tio materno, operário da CUF no Barreiro, vivia no Lavradio, quando o Lavradio, até à Baixa da Banheira, eram quintas a perder de vista.

Na sua casa térrea, numa dessas quintas, com horta e capoeiras, os perus eram ali criados a bolota.

Perto do Natal, eu e o meu pai, íamos ao Lavradio buscar os perus.

Na Estação Sul e Sueste apanhávamos o barco para o Barreiro, ainda movido a carvão.

No Barreiro apanhávamos a camioneta para o Lavradio.

Barcos e camionetas eram escassos, com longuíssimos  intervalos de espera.

Os peru, patas amarradas, viajavam numa alcofa.

Trazíamos também alfaces, tomates, cebolas e tangerinas que exalavam um perfume único e embalador.

Nisto se perdia toda uma tarde.

Chegados a casa, a minha avó embebedava o peru para o Natal com aguardente, e começava os preparativos para o tempero e o recheio.

Depois era a grande festa do jantar de Natal.

Nunca, mas mesmo nunca, voltei a comer um peru como o que a minha avó cozinhava pelo Natal.

Ainda fiz algumas tentativas, mas já nada era igual.

Nem os barcos a carvão, nem a camioneta da carreira e o  meu tio deixara de ter a horta e as capoeiras.

O cimento tomou conta de tudo e hoje o Lavradio, e tudo à volta, é o que é: betão e mais betão.

Depois chegariam os obsoletos perus de plástico, que se vendiam nos super mercados e nunca mais, no jantar de Natal, o peru assentou praça como manjar.

Tudo isto é uma doce memória, mas ao mesmo tempo amarga.

Amarga, porque, tal como o poema de David Mourão-Ferreira, de que o meu pai muito gostava, se pode ler:

Há-de vir um Natal e será o primeiro

em que se veja à mesa o meu lugar vazio.

Assim foi.,, assim será… e o Nada há-de retomar a cor do infinito.»

 

Legenda: Fotografia do Arquivo Municipal de Lisboa copiada do Público de 16 de Dezembro.

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