quarta-feira, 6 de dezembro de 2023

SUBLINHADOS SARAMAGUIANOS


Por estarmos em tempo de Natal, peguemos no tema para lembrar, segundo nos foi dizendo, que José Saramago nunca foi um homem de festas e de Natais.

Em Lisboa, os pais viveram em quartos e partes de casa. A morte prematura do irmão marcou sua mãe, que nunca lhe conseguiu transmitir uma ponta de ternura.

Referências natalícias encontramos em duas crónicas que fazem parte de Deste Mundo e do Outro, publicado em Janeiro de 1971: Um Natal Há Cem Anos e A Neve Preta.

Vamos revisitar esta última, uma crónica notável.

«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu…»

Contudo, Saramago não permite que a crónica termine sem deixar vincado que o homem, prestes a chegar à Lua, encontra uma professora quase não consegue perceber a tristeza de uma criança que pinta a neve de preto porque a mãe lhe morreu.

 A crónica já apareceu neste Cais, mas vale sempre a pena voltar a lê-la:

 

Bem sei que estamos fora da estação: o Inverno já lá vai, temos agora aí o calor, a praia, as sombras das grandes árvores, o sol duro que nos amolece, as tardes apetecidas, as noites mornas que ondulam como pesados e macios veludos negros. Falar de neve em Junho mostra uma lamentável falta de sentido da oportunidade. Mas, tal como debaixo dos pés se levantam os trabalhos, também o acaso dos encontros pode inverter a ordem das estações e trazer o Inverno para o pino do Verão e fazer passar por nós um terrível frio que nenhum agasalho será capaz de vencer. Porque, não me cansarei nunca de o dizer, é preciso muito cuidado com as crianças.

Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?

Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus rostos frescos, que nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio, que são irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos pressa de os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos impacientes, nervosos, porque estamos diante de uma espécie desconhecida… Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.

Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo a um desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui, dir-me-ão se não tenho razões para insistir: é preciso cuidado com as crianças… Não o cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob esta rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e subtil. Eu explico.

Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como esta: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer nestes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que todos nós passámos. De repente… Ah, mas é preciso muito cuidado com as crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração. Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?

«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu…»

Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta por­que a mãe lhe morreu?

 

Em Tempo:

No findar da prosa, lembrei-me que José Saramago, em quase final do 3º volume dos Cadernos de Lanzarote, tem uma referência natalícia, é bem provável que existam outros, mas esta está sublinhada:

23 de Dezembro de 1995

Hoje, procedente do Funchal, desembarcou, uma vez mais, a linha descendente da primeira família que formei: a filha Violante, os netos, Ana, que ainda fresa a tinta do seu diploma de engenharia informática, e Tiago, onze anos, vivíssimos que prometem, além do genro Danilo. Vieram juntar-se aos da casa e aos amigos chegados de Portugal para celebrarmos estes dias. No significado mais exacto e directo da palavra, vamos fazer a festa. Nenhum dia é festivo por ter já nascido assim: seria igualzinho aos outros se não fôssemos nós a fazê-lo diferente. 

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