Por estarmos em tempo de
Natal, peguemos no tema para lembrar, segundo nos foi dizendo, que José
Saramago nunca foi um homem de festas e de Natais.
Em Lisboa, os pais viveram
em quartos e partes de casa. A morte prematura do irmão marcou sua mãe, que
nunca lhe conseguiu transmitir uma ponta de ternura.
Referências natalícias
encontramos em duas crónicas que fazem parte de Deste Mundo e do Outro,
publicado em Janeiro de 1971: Um Natal Há Cem Anos e A Neve Preta.
Vamos revisitar esta
última, uma crónica notável.
«Porquê?», pergunta a professora, em voz
alta, à criança. O rapazinho não responde. Talvez mais nervosa do que quer
mostrar, a professora insiste. Há na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor
nestas situações. A criança está de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por
fim, responde: «Fiz a neve preta porque foi nesse Natal que a minha mãe
morreu…»
Contudo, Saramago não permite que a crónica termine
sem deixar vincado que o homem, prestes a chegar à Lua, encontra uma professora
quase não consegue perceber a tristeza de uma criança que pinta a neve de preto
porque a mãe lhe morreu.
A crónica já apareceu neste Cais, mas vale
sempre a pena voltar a lê-la:
Bem sei que estamos fora da estação: o Inverno já lá vai, temos agora
aí o calor, a praia, as sombras das grandes árvores, o sol duro que nos
amolece, as tardes apetecidas, as noites mornas que ondulam como pesados e
macios veludos negros. Falar de neve em Junho mostra uma lamentável falta de
sentido da oportunidade. Mas, tal como debaixo dos pés se levantam os
trabalhos, também o acaso dos encontros pode inverter a ordem das estações e
trazer o Inverno para o pino do Verão e fazer passar por nós um terrível frio
que nenhum agasalho será capaz de vencer. Porque, não me cansarei nunca de o
dizer, é preciso muito cuidado com as crianças.
Estes pequenos filhos dos homens têm andado pelas minhas crónicas. Mas
de crianças tenho falado como quem as conhece bem, só porque também por lá
passou. E agora pergunto: que são as crianças? Dez mil pedagogos se preparam
para me responder. Afasto de antemão as respostas, umas que já conheço, outras
que adivinho, e torno a perguntar: que são crianças?
Que seres estranhos são esses que viram para nós os seus rostos
frescos, que nos perturbam às vezes com um olhar subitamente profundo e sábio,
que são irónicos e gentis, débeis e implacáveis, e sempre tão alheios? Temos
pressa de os ver crescer, de os admitir no clã dos adultos sem surpresas. Somos
impacientes, nervosos, porque estamos diante de uma espécie desconhecida…
Quando passam a ser nossos iguais, falamos-lhes da infância que tiveram (a que
recordamos, como observadores do lado de fora) e sentimo-nos quase ofendidos
porque eles não gostam de ouvir lembrar uma situação em que já não se
reconhecem. São adultos, agora: outra espécie humana, portanto.
Nessa infância está, por exemplo, a história que vou contar e que devo
a um desses tais encontros de acaso. E depois de eu a reproduzir aqui,
dir-me-ão se não tenho razões para insistir: é preciso cuidado com as crianças…
Não o cuidado comum, que tende a prevenir acidentes, aqueles que aparecem sob
esta rubrica nas notícias dos jornais, mas um outro cuidado, mais melindroso e
subtil. Eu explico.
Uma professora mandou um dia aos seus alunos que fizessem uma
composição plástica sobre o Natal. Não falou assim, claro. Disse uma frase como
esta: «Façam um desenho sobre o Natal. Usem lápis de cores, ou aguarelas, ou
papel de lustro, o que quiserem. E tragam na segunda-feira.» Assim ou não
assim, os alunos fizeram o trabalho. Apareceu tudo quanto é costume aparecer
nestes casos: o presépio, os Reis Magos, os pastores, S. José, a Virgem e o
Menino Jesus. Mal feitos, bem feitos, toscos ou apuradinhos, os desenhos caíram
na segunda-feira em cima da secretária da professora. Ali mesmo ela os viu e
apreciou. Ia marcando «bom», «mau», «suficiente», enfim, os transes por que
todos nós passámos. De repente… Ah, mas é preciso muito cuidado com as
crianças! A professora segura um desenho nas mãos, e esse desenho não é melhor
nem pior que os outros. Mas ela tem os olhos fixos, está perturbada; o desenho
mostra o inevitável presépio, a vaca e o burrinho, e toda a restante figuração.
Sobre esta cena sem mistério cai a neve, e esta neve é preta. Porquê?
«Porquê?», pergunta a professora, em voz alta, à criança. O rapazinho
não responde. Talvez mais nervosa do que quer mostrar, a professora insiste. Há
na sala os cruéis risos e murmúrios de rigor nestas situações. A criança está
de pé, muito séria, um pouco trémula. E, por fim, responde: «Fiz a neve preta
porque foi nesse Natal que a minha mãe morreu…»
Daqui por um mês chegaremos à Lua. Mas quando e como chegaremos nós ao espírito de uma criança que pinta a neve preta porque a mãe lhe morreu?
Em Tempo:
No findar da prosa, lembrei-me que José Saramago, em
quase final do 3º volume dos Cadernos de Lanzarote, tem uma referência
natalícia, é bem provável que existam outros, mas esta está sublinhada:
23 de Dezembro de 1995
Hoje, procedente do Funchal,
desembarcou, uma vez mais, a linha descendente da primeira família que formei:
a filha Violante, os netos, Ana, que ainda fresa a tinta do seu diploma de
engenharia informática, e Tiago, onze anos, vivíssimos que prometem, além do
genro Danilo. Vieram juntar-se aos da casa e aos amigos chegados de Portugal para
celebrarmos estes dias. No significado mais exacto e directo da palavra, vamos fazer a festa. Nenhum dia é festivo por ter já
nascido assim: seria igualzinho aos outros se não fôssemos nós a fazê-lo diferente.
Sem comentários:
Enviar um comentário